‘Estavam atirando em nós como se fôssemos criminosos’

Ato com mais de três mil indígenas termina com repressão em frente ao Congresso

Na tarde desta terça-feira (25), mais de três mil indígenas que participam do 14º Acampamento Terra Livre tomaram as ruas da Esplanada dos Ministérios, em Brasília.Depois de realizar uma espécie de grande marcha fúnebre, eles acabaram sendo reprimidos ao tentar depositar quase 200 caixões no espelho de água do Congresso. Os policiais utilizaram gás lacrimogênio e spray de pimenta contra os manifestantes. Havia mulheres, crianças e idosos no ato.

“Essa marcha simboliza o genocídio que o governo, junto ao parlamento e a Justiça, estão fazendo com os direitos dos povos indígenas. Queremos mostrar para o Brasil e o mundo o quanto a legislação indigenista brasileira está sendo atacada”, diz Kleber Karipuna, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Manifestante protege-se de ataque da polícia. Foto: Mídia Ninja / MNI

“A nossa principal pauta é pela demarcação das Terras Indígenas. É a primeira vez que se reúnem mais de três mil indígenas em Brasília nos últimos anos”, comenta Eunice Kerexu Guarani Mbya, da TI Morro dos Cavalos.

Saindo do acampamento, ao lado do Teatro Nacional Cláudio Santoro, a manifestação caminhou tranquilamente durante cerca de 40 minutos, quando chegou ao Congresso. A ação pacífica foi dispersada pelas polícias militar e legislativa.

Protesto foi pacífico até intervenção da polícia. Mídia Ninja / MNI

Angela Katxuyana, liderança indígena do norte do Pará, repudia a ação da polícia: “Cada dia a gente vem sofrendo, vem sendo massacrado, e quando a gente vem dialogar com o Estado, acontece isso. A violência contra os povos indígenas continua tanto no papel quanto aqui”, diz.

José Uirakitã, do povo Tingui Botó (AL), testemunhou a repressão, que se seguiu por mais de 1h, coletou artefatos utilizados pela polícia: “Eles estavam atirando como se fossemos criminosos”, revela.

De Pernambuco, Cida Atikum, uma das quase mil mulheres que participavam da ação, também se indignou: “Nós queremos o que é nosso por direito. Por isso que nós vamos mostrar que ‘pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro!”

Cartucho de bomba de gás recolhido. Foto: Rafael Nakamura / MNI

Após a primeira dispersão, os indígenas tentaram continuar em frente ao Congresso, porém foram atacados seguidamente por novas levas de bombas de gás lacrimogêneo. Com a suspeita de que algum indígena pudesse ter sido detido, diversos manifestantes permaneceram no local com seus cantos e rezas. Ao fim do ato nenhum indígena foi preso.

Deputados da bancada do PT e do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) reuniram-se com os indígenas para manifestar sua solidariedade ao ato. Na tarde de amanhã, uma delegação de indígenas será recebida em uma sessão especial da Comissão Especial de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Manifestante recolhe cápsulas de borracha atiradas pela polícia. Mídia Ninja / MNI

Protesto pacífico de povos indígenas é atacado pela polícia no Congresso

Um protesto pacífico de mais de três mil indígenas foi atacado com bombas de efeito moral e gás pela policia na frente do Congresso, na tarde de hoje (25/4). Os manifestantes foram dispersados após tentarem deixar quase 200 caixões no espelho de água do Congresso. Vários manifestantes passaram mal por causa do gás. No protesto, havia centenas de crianças, idosos e mulheres.

Um gigantesco cortejo fúnebre tomou conta da Esplanada dos Ministérios por volta das 15h. Os manifestantes saíram do acampamento onde estão, ao lado do Teatro de Nacional de Brasília, levando os caixões e um banner com a expressão “Demarcação Já”. Eles seguiram tranquilamente até o Congresso.

Os caixões representavam líderes indígenas assassinados por causa dos conflitos de terra em todo país – 54 indígenas foram assassinados em todo o país por causa de conflitos de Terra, só em 2015, segundo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

“São nossos parentes assassinados pelas políticas retrógradas de parlamentares que não respeitam a Constituição Federal”, explica a liderança Sônia Guajajara, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Até o fechamento desta notícia, os manifestantes seguiam cantando e dançando em frente ao Congresso. Eles prometem permanecer até um pouco mais tarde no local.

Os indígenas participam da 14ª edição do Acampamento Terra Livre, a maior mobilização indígena dos últimos anos. O evento vai até esta sexta (28/4) e protesta contra a paralisação das demarcações de Terras Indígenas, a nomeação do deputado ruralista Osmar Serraglio (PMDB-PR) com ministro da Justiça, o enfraquecimento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e as várias propostas em tramitação no Congresso contra os direitos indígenas.

Debates movimentam segundo dia do Acampamento Terra Livre 2017

Plenária de abertura discute as ameaças aos direitos indígenas nos três poderes

Sônia Guajajara discursa na plenária da manhã de hoje. Foto: Mídia Ninja / MNI

O dia amanheceu movimentado no 14º Acampamento Terra Livre, em Brasília. Logo cedo, ocorreram apresentações de danças e cantos tradicionais dos mais de cem povos acampados ao lado do Teatro Nacional Claudio Santoro.

Ontem (24), o presidente da Funai publicou o relatório de identificação e delimitação de uma Terra Indígena do povo Guarani no Rio de Janeiro e, hoje, foram publicadas outras quatro, três no Vale do Ribeira (SP), do povo Guaranoi Mbya, e uma do povo Pipipã, no Vale do São Francisco (PE) (saiba mais).

À tarde, os participantes do Acampamento Terra Livre seguem em marcha rumo ao Congresso Nacional como parte da programação que acontece em Brasília até sexta-feira (28).

Líderes indígenas na plenária da manhã de hoje no ATL. Foto: Mídia Ninja / MNI

Delegações estrangeiras

Delegações de povos indígenas da Indonésia, Guatemala, Equador e Bolívia também estiveram na tenda principal para se unir ao coro e demonstrar solidariedade. “Lutamos pelos direitos dos povos indígenas. Estou muito feliz em conhecer tantos povos diferentes no Brasil”, diz Devi Aggraini, da Organização das Mulheres Indígenas da Indonésia.

Por volta das 10h30, foram iniciados os debates com mesas temáticas que discutiram as ameaças aos direitos indígenas nos três poderes do Estado.

A primeira reuniu lideranças indígenas das diversas regiões do Brasil.  “Vamos escrever uma carta e entregar pessoalmente para os chefes de Estado para ver se, dessa vez, vão nos ouvir”, disse Raoni Kayapó.

Um ponto comum nas falas de várias lideranças foi a falta de representatividade dos povos indígenas na política institucional. “O retrocesso está aí porque temos uma bancada ruralista. Cadê a bancada indígena?”, questiona Telma Marques Taurepang.

Acampamento Terra Livre ao lado do Teatro Nacional, em Brasília. Foto: Mídia Ninja / MNI

“Precisamos eleger nossos indígenas no Congresso Nacional. Não temos nenhum político que nos represente e que fale por nós”, diz Almerinda Tariana, da região do Alto Rio Negro (AM).

Na visão dos debatedores, os atuais representantes nos três poderes personificam as principais ameaças sofridas pelos povos indígenas em seus territórios.

“Cada dia estamos sendo mais encurralados por este governo”, diz Antônio da Silva Awá, da aldeia Renascer em Ubatuba, litoral de São Paulo.

“Os deputados, senadores, governadores não nos conhecem. Eles dizem que não trabalhamos, mas só ficam dentro de uma sala escrevendo no papel leis para nos prejudicar”, completa Kuiussi Kisedje, liderança do Território Indígena do Xingu.

“Nossas vozes indígenas, que são de muitas línguas, não podem ser ignoradas”, comenta Alvaro Tukano.

Ataques nos três poderes

Ao meio dia, na segunda mesa temática, participaram membros das organizações de apoio ao ATL, que falaram principalmente sobre o papel do judiciário e do legislativo nos recentes ataques aos direitos dos povos indígenas.

“Quando o poder judiciário impõe o marco temporal de 1988 ele muda a constituição sem consultar os povos indígenas”, diz Valéria Buriti.

Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Conselho indigenista Missionário, avaliou que o Estado que sistematicamente ignora as constantes denúncias feitas sobre a situação povos indígenas no Brasil. “Levar a questão indígena para os organismos internacionais é uma estratégia importante no momento político que o Brasil está passando”, disse.

Sonia Guajajara, da coordenadora da Apib, finalizou os debates fazendo um chamado à mobilização: “Estamos aqui para dizer ao Estado brasileiro que não vamos permitir o desmonte de nossos direitos. Estamos aqui para dizer que existimos”.

Participantes do acampamento almoçam. Foto: Mídia Ninja / MNI

Lideranças indígenas se reúnem com Lula

Lula convidou as lideranças indígenas para o encontro. Foto: Alan Azevedo / MNI

Atendendo a convite feito pelo Instituto Lula, lideranças indígenas de diversas regiões do país se reuniram com o ex-presidente Lula, na noite desta segunda-feira (24). Os indígenas falaram sobre demandas que estão sendo discutidas no Acampamento Terra Livre 2017, que vai até esta sexta (28), em Brasília.

A conversa aconteceu no Centro Internacional de Convenções do Brasil, em Brasília, durante agenda do ex-presidente no seminário “Estratégias para Economia Brasileira”.

Sônia Guajajara, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirmou que a demarcação das terras indígenas durante os governos do PT foi insatisfatória, mas avaliou que a situação piorou com o governo Temer.

“O mais grave agora é que o relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, Osmar Serraglio, foi nomeado ministro da Justiça. Agora não é só mais uma ameaça de retrocesso, mas já é o retrocesso em execução”, afirmou Sônia. A PEC tramita na Câmara e transfere do governo federal para o Congresso a última palavra sobre as demarcações. Se o projeto for aprovado, as demarcações devem ser paralisadas definitivamente.

O cacique Babau Tupinambá chamou atenção para as poucas demarcações na região nordeste e o aumento da criminalização das lideranças indígenas. Eliseu Lopes, do Conselho Aty Guasu, relatou a situação de luta pela terra vivida pelo povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do sul, onde enfrentam inúmeras violências. O cacique Marcos Xukuru ressaltou que é preciso participação indígena na política.

Lula fez diversas perguntas às lideranças em relação às suas demandas e participação em programas como Prouni. Destacou a importância de se fazer articulações nos Estados para eleger pessoas alinhadas com os movimentos indígenas no sentido de fortalecer a luta por seus direitos com adesão entre vereadores e deputados.

Relatórios lançados no ATL escancaram violação de direitos indígenas

“Há um padrão de graves violações de direitos humanos que o Estado brasileiro ainda precisa reconhecer”, afirma Erika Yamada, relatora da Plataforma Dhesca

Na noite de ontem (24/4), a plenária de abertura do 14º Acampamento Terra Livre (ATL), maior mobilização indígena dos últimos anos, foi o espaço para o lançamento de um conjunto de documentos sobre a situação dos direitos indígenas no País.

A Relatoria de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma de Direitos Humanos (Dhesca Brasil) reuniu em um só documento três relatórios: o Relatório da Missão ao Brasil da Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos povos indígenas, o Relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) sobre a situação dos povos indígenas no sul do Brasil e o Relatório da Coalizão de defesa dos Direitos Indígenas para a Revisão Periódica Universal (RPU/ONU).

“Apesar de termos uma constituição protetiva, ela está sob ataque, tanto do Legislativo, como do Executivo e do próprio Judiciário. Esse ataque se materializa na paralisação de demarcação de terras indígenas, na impunidade com relação aos crimes e violências de todos os tipos cometidos contra povos e comunidades indígenas e na crescente criminalização das lideranças e comunidades que resistem e lutam por seus direitos”, afirma Érika Yamada, relatora da Plataforma Dhesca. Ela avalia que há um padrão de graves violações de direitos humanos que o Estado brasileiro ainda precisa reconhecer.

Participantes da plenária de recepção do ATL. Foto: Mídia Ninja / MNI

Uma das questões centrais abordadas nos relatórios, todos elaborados com a participação de povos e organizações indígenas, é o forte racismo que persiste contra os indígenas no Brasil.

“Há um racismo institucional, que impede a garantia do acesso à justiça aos povos indígenas, que faz perdurar processos de demarcação sob crescente insegurança jurídica e que deixa impune aqueles que praticam crimes contra as comunidades. Esse racismo que também está na fala de autoridades públicas, quando dizem que os índios e outros grupos não prestam, que terra não enche barriga de índio, quando dizem que o índio não pode ficar parado no tempo, ou que é inútil e preguiçoso, que não haverá terra demarcada, e claro que compara indígenas ou quilombolas a gado”, avalia a relatora.

O cenário político do início de 2017 e as ações contrárias aos povos indígenas adotadas pelo governo Temer também são abordadas no documento, como a Portaria 80 do Ministério da Justiça, publicada em janeiro. A norma cria um Grupo Técnico Especial (GTE) na pasta para analisar os relatórios de identificação e delimitação das terras indígenas produzidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A portaria foi duramente criticada por indígenas e indigenistas por criar, na prática, uma nova instância com a finalidade de dificultar as demarcações de terras.

Além destes pontos, a publicação analisa ainda a efetivação do direito de Consulta Prévia, Livre e Informada sobre projetos que afetem os povos indígenas, as políticas de saúde, educação e serviços sociais, a atuação da Funai, o acesso dos indígenas à Justiça e o as ameaças representadas por megaprojetos econômicos.

Segregação dos indígenas no Sul

“A situação que encontramos nos três estados da região Sul é muito dramática. É uma situação de confinamento, na qual nem sequer os direitos sociais mínimos, como bolsa-família, estão sendo assegurados aos indígenas. Esse confinamento se dá em locais nos quais os indígenas não tem nem sequer espaço para construir casas ou enterrar os mortos”, explica Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Cimi e coordenador do grupo de trabalho que elaborou o relatório sobre a Região Sul.

“Esses relatórios são importantes porque são um momento em que nossa fala é mostrada, o que fortalece nossa luta. A sociedade tenta invisibilizar a nós, indígenas, todo o tempo, especialmente na região Sul, em que todo o tempo os políticos estão falando que não tem indígenas lá”, afirma Kerexu Yxatyry, liderança Guarani Mbya da Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos, uma das abordadas pelo relatório do CNDH.

Exemplo da situação enfrentada por vários povos indígenas do Brasil, os Guarani Mbya lutam pela demarcação de da TI Morro dos Cavalos há 24 anos. Desde 2008, os indígenas aguardam a homologação da TI, última etapa formal de reconhecimento de uma terra indígena.

“A não demarcação atrapalha todo o modo de vida Guarani, principalmente na questão do plantio, da caça e do acesso à matéria-prima para fazer nossas casas e artesanatos. De 1988 hectares, ocupamos menos de um quarto da terra indígena, um espaço bem pequeno. A maioria das casas dos indígenas estão concentradas próximas da rodovia BR-101 e as partes melhores ainda estão ocupadas por posseiros”, explica a indígena.

Recomendações ignoradas e direitos não efetivados

No relatório divulgado em setembro de 2016 a respeito de sua visita ao Brasil, ocorrida meses antes, a relatora especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, caracterizou a situação dos povos indígenas no Brasil como a mais grave desde a adoção da Constituição Federal de 1988.

Tauli-Corpuz apresentou uma série de recomendações ao Estado brasileiro para superar a grave situação que a relatora da ONU verificou durante sua passagem pelo Brasil. Um ano depois de sua visita, entretanto, nenhuma das recomendações foi cumprida, conforme denunciaram ao Alto Comissariado da ONU a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e outras 30 organizações no início de abril.

“O Brasil será sabatinado no dia 5 de maio na ONU. Como agora ele é membro do Conselho de Direitos Humanos, isso deveria forçá-lo a arcar de forma mais firme com esses compromissos. Depois da sabatina, espera-se que o governo faça uma apresentação das recomendações recebidas”, afirma Yamada.

“Olhando para o cenário político, eu vejo um cenário desesperador. É um trator passando por cima de todo o Brasil, especialmente dos indígenas. Mas, por outro lado, vejo que hoje os indígenas tomaram posse dessa questão da luta pelos direitos, como foi na década dos anos 1980 pela Constituinte. Infelizmente, hoje deveríamos estar usufruindo daquela luta do passado, mas estamos lutando para garantir que permaneçam esses direitos”, conclui Kerexu Yxatyry.