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Sul da Bahia, garantia da lei e da ordem para quem?

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Por Marcelo Zelic*

“Não pode, porém, a República permanecer na imobilidade com que tem assistido, em muitos casos, ao massacre de índios e sua sujeição a um regime de trabalho, semelhante ao cativeiro, sob o fundamento de lhe ser indiferente saber até que ponto pode coadunar-se com a lei e as responsabilidades de governo…” 

20/06/1910 – Dr. Rodolpho Miranda Exposição de motivos para a criação do SPI

Passados 104 anos da criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), seguimos com o mesmo imobilismo por parte do Estado brasileiro no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos constitucionais dos índios brasileiros e à educação adequada para o entendimento de que o Brasil é multicultural e pluriétnico.

Desde 2012, os povos Pataxó, Tumbalalá e Tupinamba da Bahia esperam a assinatura da portaria declaratória de suas terras. Segundo nossa Constituição Federal de 1988, deveria ter sido assinada por autoridade competente até 1993, mas os decretos de homologação e as portarias declaratórias repousam nas gavetas da Presidência da República e do Ministério da Justiça à espera de vontade política. Outras 18 áreas de várias partes do Brasil também estão guardadas nessas gavetas.

A presidenta Dilma frente à situação de conflito em que vive, por exemplo, os Tupinambá, no sul da Bahia, em vez de assinar o processo de homologação de suas terras (47.376 ha), optou por assinar um decreto de uso da força para a  garantia da lei e ordem. 

Quais interesses movem o Estado brasileiro a não regularizar essas terras indígenas de direito originário já reconhecidas? Qual desordem irão combater os militares enviados à região?

Sobre os tempos da ditadura militar a Bahia é lembrada, entre outros fatos, como o lugar onde morreu Carlos Lamarca. Ele, Glauber Rocha e tantos baianos tiveram seus direitos reconhecidos pelo Estado em reparação às violências sofridas. Às suas famílias o Estado brasileiro pediu desculpas em atos solenes organizados pelo Ministério da Justiça.

Porém, nada ainda foi feito em relação para repararação das tragédias vividas pelas populações indígenas.

Nos anos 60, um genocídio ocorrido em Itabuna exterminou duas aldeias inteiras para a tomada de suas terras. Foi a reincidência de um massacre praticado em 1951 com o mesmo objetivo e inúmeros assassinatos aconteceram na região, mas para os descendentes dessas populações atingidas o conceito de reparação não os alcança.

Relatório Figueiredo, produzido pelo procurador Jader de Figueiredo Correia para o Ministro Albuquerque Lima entre 1967-68, traz informações importantes sobre a violação dos direitos indígenas na Bahia, que pedem, sim, reparação do Estado brasileiro para com as famílias dos povos indígenas atingidos. Reparação coletiva baseada no reconhecimento de seus territórios.

Em depoimento prestado na Câmara dos Deputados para a CPI de 1963, o Sr. Cildo Meirelles, irmão do indigenista Francisco Meirelles, que prestava serviços ao SPI sobre questões de terra, aponta:

Em depoimento prestado na Câmara dos Deputados para a CPI de 1963, o Sr. Cildo Meirelles, irmão do indigenista Francisco Meirelles, que prestava serviços ao SPI sobre questões de terra, aponta:

O Deputado Azziz Maron, da Bahia, por exemplo, é um dos grandes invasores da área da reserva de Itabuna. Essa reserva dos índios da Bahia é quase toda ela em zona de cacau, terra de primeira qualidade, às vezes, a terra é boa para o café, mas não presta para cacau. O filho do Senador Juracy Magalhães, que se suicidou e era deputado, era também dono de outra grande área invadida.” [1]

José Maria da Gama Malcher, ex-diretor do Serviço de Proteção ao Índio e ex-secretário do Conselho Nacional de Proteção aos Índios à época de seu depoimento, quando perguntado se no Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu “a área é toda do SPI”, respondeu de pronto: NÃO. “Tenho a impressão de que os arrendamentos são de tal monta que até a casa do Posto está arrendada.” [2]

Gama Malcher não foi a única voz que denunciou o esbulho das terras indígenas de Itabuna, registrado noRelatório Figueiredo. Armando Ribeiro da Cruz e outras duas pessoas em outubro de 1967 denunciam em carta ao Ministro General Albuquerque Lima o roubo praticado. [3]

O depoimento contundente de Helio Jorge Bucker em 1967, quando completara 16 anos de serviço público como funcionário do SPI, tendo atuado como chefe dos Postos Indígenas La Lima, Capitão Iacri e Caramuru-Paraguaçu, este em Itabuna e chefe das 5ª e 6ª Inspetorias Regionais, exercendo também funções de inspetor itinerante, traz uma série de iirregularidades no SPI sobre “o esbulho as terras indígenas praticados por grupos políticos e econômicos.”

Helio Bucker expõe os casos de vários estados onde os povos Kadiweu, Kaiowá, Xavante, Terena, Bororo, Nambikwara, Pareci, Tapayuna, Rikbaktsa, Avá Canoeiro, Arara, Kayabi, Cinta Larga e Pataxó perderam suas terras mediante fraude jurídica e violência. [4]

Voltando ao sul da Bahia, região em que neste ano de 2014 as Forças Armadas, junto com outras forças de segurança, vão atuar a mando do governo federal para garantir a lei e a ordem diz:

 

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É preciso que a sociedade reflita sobre estes depoimentos. É preciso que as forças de segurança deslocadas para lá saibam destes fatos. Afinal, dependendo de como agirem, podemos reparar estas violências cometidas pelo Estado ou repetir as do passado recente contra essas populações.

A portaria que autoriza o uso interno das Forças Armadas determina que “a tropa empregada numa Op GLO (operação de garantia da lei e ordem) poderá fazer face a atos ou tentativas potenciais capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou ameaçar a incolumidade das pessoas e do patrimônio.”

Infelizmente, o texto acima corrigido para a publicação da 2ª versão da portaria do Ministério da Defesa ficou sem sentido. Ele introduz algo que as Forças Armadas poderão fazer e não explicita o quê, pois foram suprimidos os exemplos que davam um parâmetro para a sociedade compreender o objeto concreto e as situações a serem enfrentadas durante uma Op GLO.

Os ítens abaixo foram suprimidos do texto da 1ª versão:

a) ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação;

b) ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio incluindo os navios de bandeira brasileira e plataformas de petróleo e gás na plataforma continental brasileiras;

c) bloqueio de vias públicas de circulação;

d) depredação do patrimônio público e privado;

e) distúrbios urbanos;

f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas;

g) paralisação de atividades produtivas;

h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País;

i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e

j) saques de estabelecimentos comerciais.

Os itens c, f e g têm sido usados pelos povos indígenas do estado da Bahia como forma de pressionar o governo federal a tirar da gaveta as portarias que reconhecem o seu direito originário às terras em disputa no estado.

Com as ações repressivas desencadeadas, o Estado  pretendia na 1ª versão “restabelecer o livre estado democrático de direito, a paz social e a ordem pública”.

Porém, uma ação dura do Estado na 2ª versão passou a ser associada “à defesa da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Sendo que no item 4.4.3 que define as principais ações que norteariam a intervenção federal, a defesa de propriedades em litígio não consta como atribuição definida para o emprego das Forças Armadas em uma região do país. Fica elencada e escondida atrás da expressão “entre outras” acrescentada ao texto.

Como atuarão as tropas federais frente a ocupação legítima destas terras  por parte dos indígenas? Qual o entendimento sobre o direito ao patrimônio que será objeto da ação do governo? É papel do estado brasileiro resolver no braço forte ou na mão amiga esta difícil situação histórica de roubo de terras indígenas e muita violência?

Há consciência entre membros e instâncias das Forças Armadas que seu papel é garantir a constituição e não atuar para resolver questões de terras como que a serviço de interesses privados e políticos eleitorais.

A esses setores, em respeito ao compromisso que expressam ter com a democracia, bem como àqueles que se preocupam com um país próspero e de todos, dirigimos as informações abaixo.

Em 03/04/1968, Benevides Andrade, agente do Departamento de Polícia Federal, compareceu espontaneamente para dar seu depoimento.

*Marcelo Zelic é  vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do projeto Armazém Memória.

[1] Acessar citação em http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=297

[2]  Acessar citação em http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=445

[3]  Acessar carta em http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=1391

[4] Acessar íntegra do depoimento: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=3729

[5] A FUNAI hoje sofre um ataque do executivo e legislativo para efetuar um desmonte de suas funções constitucionais.

[6] Acesso ao Relatório da visita ao Posto Kirirí: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=7536

[7] Tanto para esta ação como para as demais que forem acionadas por esta portaria do Ministério da Defesa.

[8]  Como o recente leilão de gado realizado no Mato Grosso do Sul para arrecadar recursos para o pagamento de “milícias privadas”

[9] Endereço de acesso: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=5210

[10] Para ler a íntegra das denúncias da tortura sofrida pelos indígenas Tupinambás em 2009, acesse: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/jornal/gtnm_68/temacapa.html

Terena: indígenas retomam duas fazendas em terra homologada há 10 anos

Por Ruy Sposati, Cimi,
de Campo Grande (MS)

Cerca de 50 famílias Terena retomaram duas fazendas que incidiam sobre a terra indígena Limão Verde, na última quinta-feira, 12, em Aquidauana (MS) . A área, identificada como território tradicional, foi homologada em 2003 pelo governo federal, mas a desintrusão completa das propriedades rurais não foi feita.

Segundo lideranças, não houve violência durante a ocupação, e a situação permanece tranquila. As famílias estão assentadas nas propriedades ocupadas – a Fazenda da Mocinha, de 150 hectares, e a Fazenda Bonanza, de 400 hectares, e já iniciaram a limpeza e o plantio no terreno.

Apesar de ter sido demarcada e homologada pelo governo federal há dez anos, a desintrusão completa da terra indígena nunca ocorreu. Ao menos 2 mil hectares ainda estão na posse de proprietários rurais, de um total de 5,3 mil hectares identificados pelo laudo antropológico. Cerca de 2 mil pessoas vivem no local.

Ainda em 2003, proprietários de fazendas que incidem sobre a terra Limão Verde entraram na Justiça exigindo a garantia da posse da área, argumentando não se tratar se território tradicional indígena.

Em 2008, os Terena retomaram 392 hectares da fazenda Santa Bárbara, uma das propriedades que incidiam sobre a terra Limão Verde. Um ano depois, o Supremo Tribunal Federa (STF) decidiu que a área deveria permanecer na posse dos indígenas.

Governo mantém na gaveta 21 processos de demarcação de Terras Indígenas

Áreas somam quase dois milhões de hectares e incluem terras em Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde a demanda pelas demarcações é urgente

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Oswaldo Braga de Souza, ISA,

de Brasília (DF)

O governo federal mantém parados 21 processos de demarcação de Terras Indígenas (TI): 14 aguardam a assinatura de decreto de homologação pela presidenta Dilma Rousseff e outros sete a portaria declaratória do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. As áreas somam quase dois milhões de hectares.

As informações são oficiais e foram divulgadas, na segunda (19/8), pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em uma reunião da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), em Brasília. Os dados são de maio deste ano.

O governo de Dilma Rousseff tem o pior desempenho, desde a democratização do País, na regularização de TIs (veja aqui). A portaria declaratória e o decreto de homologação são as duas principais etapas finais do processo de demarcação (saiba mais).

Há vários outros processos que, teoricamente, poderiam ser encaminhados para o ministro da Justiça ou a presidenta, mas possuem pendências técnicas ou jurídicas, como decisões judiciais contrárias, prazos de contestação em aberto, demarcação física em curso, por exemplo (veja aqui os números gerais sobre TIs no País). Ou seja, o quadro divulgado pela Funai inclui apenas os processos livres de qualquer empecilho burocrático e que ainda não foram concluídos por falta de decisão política.

“Com a gaveta cheia de processos de demarcação, a conversa do governo de aproximação com os índios torna-se vazia”, critica Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA. “Retardar as demarcações por falta de vontade política é expor as comunidades dessas terras, gratuitamente, à ação violenta dos interesses contrariados.”

A demora em finalizar os processos torna vulneráveis as populações que demandam essas áreas à ação de madeireiros, grileiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais.

Demandas urgentes

Na lista divulgada pela Funai, consta a TI Taunay-Ipegue, do povo Terena, com 33,9 mil hectares, no Mato Grosso do Sul, cujo processo foi aprovado e publicado pelo presidente da Funai em agosto de 2004. Depois de nove anos, aguarda a assinatura de portaria declaratória.

O estado é palco do maior número de conflitos em TIs e de uma negociação espinhosa entre governos federal e estadual, fazendeiros e comunidades indígenas para resolvê-los (saiba mais).

A lista inclui ainda pequenas áreas Kaingang, Guarani, Guarani Mbyá e Guarani Ñandeva, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A demanda pela oficialização de TIs nos dois estados também é urgente por causa das terras, em geral, diminutas destinadas aos povos indígenas (leia mais no box abaixo).

Recentemente, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, pediu ao Ministério da Justiça a suspensão indiscriminada das demarcações no Paraná e no Rio Grande do Sul com base em um suposto relatório da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que contestaria a ocupação tradicional indígena. Conforme divulgado pelo ISA, o órgão não realizou nenhum estudo, mas apenas enviou dados à Casa Civil sobre uso e ocupação da terra por não indígenas (veja aqui).

Também está na lista da Funai a TI Cachoeira Seca (PA), dos índios Arara, contatados só em 1987. A área foi declarada, em 1993, com 760 mil hectares, mas, por causa da presença de muitos ocupantes não indígenas, o processo sofreu pressões e os estudos foram refeitos. Em 2008, a TI foi novamente declarada com 733,6 mil hectares. Várias tentativas de demarcação física foram feitas, pois os ocupantes não índios impediam sua realização. Afinal, a TI foi demarcada e encaminhada, em outubro de 2012, para ser homologada. A homologação é uma das condicionantes socioambientais da licença da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA).

A assessoria da Casa Civil comunicou que informações sobre processos de demarcação deveriam ser solicitadas ao Ministério da Justiça. A assessoria do ministério não retornou pedido de esclarecimento sobre a não conclusão dos 21 processos de demarcação até o fechamento desta notícia.

TIs são muito pequenas no centro-sul do País

A maioria das TIs no centro-sul do País tem extensão muito pequena e insuficiente para garantir condições de vida adequadas para as comunidades indígenas, conforme determina a Constituição.

Pouco mais de 51% da população indígena do País vive fora da Amazônia Legal, mas ocupando menos de 1,5% do total das TIs, segundo o censo do IBGE de 2010. Os indígenas somam 896,9 mil pessoas no Brasil.

O caso mais grave de falta de terras está no Mato Grosso do Sul, que tem apenas 2,2% de sua extensão ou 815,9 mil hectares ocupados por TIs, num total de 51 áreas. Apesar disso, vivem no estado 77 mil índios ou 8,5% da população indígena total, segundo maior contingente do País. As TIs sul-mato-grossenses correspondem a apenas 0,7% da área total das TIs brasileiras.

O Rio Grande do Sul tem 46 TIs, totalizando 104,3 mil hectares – 0,3% da área total do estado e 0,09% da área total de TIs no Brasil. O estado abriga uma população de 34 mil índios ou 3,7% do total.

Santa Catarina resguarda 22 TIs, num total de 83,1 mil hectares – 0,8% da extensão do estado e 0,07% do território das TIs brasileiras. O estado tem uma população indígena de 18,2 mil índios ou 2% do total.