Indígenas denunciam corte de bolsas e abandono da educação diferenciada em reunião com ministro

Lideranças indígenas cobraram regularização das bolsas nas universidades. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

Lideranças indígenas, entre professores e estudantes, foram recebidos, anteontem (25), no Ministério da Educação (MEC) pelo ministro Rossieli Silva, para reivindicar seu direito à educação diferenciada. A reunião ocorreu durante o Acampamento Terra Livre (ATL) 2018, que reuniu mais de 3 mil indígenas, no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília. A mobilização começou na segunda e terminou hoje (27/4).

Os indígenas denunciaram o corte e atraso nas bolsas para o ensino superior. De acordo com eles, mesmo com o acesso às universidades garantido por meio das políticas de cotas, a permanência de indígenas em cursos de graduação e pós-graduação não está assegurada por causa do problema.   

Silva comprometeu-se a receber, em maio, uma comissão de lideranças para tratar do tema. “Realmente, nós vivemos em um período de cortes. Vou me debruçar, pessoalmente e especialmente, sobre a questão do bolsa permanência”, afirmou o ministro. Técnicos do ministério justificaram que os que atrasos na entrega das bolsas de permanência seriam decorrência da desatualização nos cadastros dos alunos.

O problema das bolsas é particularmente grave para os indígenas, tendo em vista os gastos com moradia, alimentação e transporte que precisam arcar nas cidades.  É preciso permanecer anos longe de casa, com pouco ou nenhum auxílio, em meio a uma cultura diferente, até a conclusão dos cursos para, finalmente, voltar para suas comunidades de origem e conseguir trabalhar com seu povo.         

“A universidade não está preparada de todas as formas para nos ensinar, até mesmo para nos receber. Não está preparada para entender as formas com que os indígenas pensam” diz Luana Kumaruara, do Pará. Estudante de antropologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). “Sem dinheiro, não tem como o indígena se manter na cidade”, conta. A UFOPA conta com mais de 400 alunos indígenas,

A reunião com o ministro foi convocada pelo GT de Educação do ATL e tratou ainda de pautas como autonomia na elaboração dos Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) e falta de estrutura na educação básica nas aldeias.

“Na educação básica, o dinheiro muitas vezes chega nas cidades, mas é desviado pelas prefeituras”, explicou Tuira Kayapó.

Os indígenas exigem ter mais voz na elaboração dos PPPs, que muitas vezes já vem prontos do MEC. A participação das comunidades neste planejamento pode garantir, entre outras pautas, um calendário indígena diferenciado, reforçam os indígenas. 

Construções de edificações escolares pela metade, dinheiro de merenda desviado, falta de energia elétrica e transporte precarizado também foram denunciados pelas lideranças. Elas lembraram ainda que as escolas não atendem as necessidades e peculiaridades de cada povo.

Edileuda Shanenawa, professora do ensino básico no Acre, alerta que o governo quer “colocar nosso conhecimento no nível ocidental”. A professora defende que é preciso aprender o português para entrar no mundo dos brancos, mas que ainda assim é preciso respeitar o direito dos povos indígenas à educação diferenciada, com materiais didáticos específicos. “Não queremos o livro que vem do MEC, queremos nosso próprio material”, completa a representante da Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiacre).

Movimento indígena pretende lançar plataforma de candidaturas para eleições

Plenária reuniu candidatos de todo o país no ATL 2018. Sônia Guajajara fala aos indígenas. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

Estimativa preliminar da Apib aponta pelo menos 36 candidatos para assembleias estaduais e Congresso

Uma plataforma que pretende dar visibilidade às pré-candidaturas indígenas deve ser lançada, em maio, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), segundo sua coordenação. O site vem sendo construído colaborativamente, desde o final de 2017, visa apoiar os indígenas que se candidatem em todo o país. A Apib fez uma estimativa preliminar de 36 candidaturas a deputado estadual e federal e senador (leia mais).

Serão divulgadas e apoiadas candidaturas comprometidas com o movimento indígena e capazes de viabilizam políticas que assegurem os bandeiras prioritárias da articulação. “Tem partido que não permite colocar nossos direitos nessa conjuntura. São inimigos nossos. Nunca estiveram e não vão estar do nosso lado”, diz Valéria Paye, da coordenação da Apib.

Num contexto em que seus direitos constitucionais são ameaçados pelos três poderes, os indígenas pretendem assumir o protagonismo político e lutar para incluir nos espaços de decisão pautas de seu interesse. A defesa do direito à diferença, à terra, ao “bem viver” e à gestão sustentável de seus territórios são os principais temas que estarão na plataforma.

Ontem (26), a ideia foi apresentada num plenária do Acampamento Terra Livre 2018, quando 21 pré-candidatos indígenas às eleições apresentaram-se e falaram de suas propostas. A mobilização começou na segunda e terminou hoje (27/4), no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.

“As candidaturas não são pela busca do prestígio, e sim para conseguir igualdade de oportunidades para decidir sobre as vidas indígenas, para discutir e decidir o que é melhor para o povo”, diz Sônia Bone Guajajara, pré-candidata à Vice-Presidência pelo PSOL.

Dinamam Tuxá, da coordenação da Apib, vê a representatividade na política como um dos pilares para inverter a lógica de opressão contra os povos indígenas no Brasil: “Chegaram com truculência, violência e extermínio. Agora cabe a nós, nesse momento, descolonizar. E, para descolonizar, precisamos eleger os nosso deputados, porque a colonização é orquestrada e comandada pelo Congresso Nacional, pela Presidência da República, que está assumindo o papel fundamental de condução do extermínio de povos indígenas no Brasil.”

Indígenas reafirmam luta pela revogação do Parecer do Genocídio e governo se compromete a retomar reuniões do CNPI

Indígenas se sentiram desrespeitados por ter seus celulares recolhidos na reunião com órgãos de governo. Crédito: Priscila Tapajoara/Mídia Índia

Em reunião com lideranças, órgãos do governo comprometeram-se a responder questionamentos e reativar Conselho Nacional de Política Indigenista

No dia seguinte à manifestação de mais de três mil indígenas em frente à Advocacia-Geral da União (AGU), lideranças indígenas tiveram uma nova reunião com a ministra Grace Mendonça. Durante seis horas da tarde de quinta (26), representantes do Ministério Público Federal (MPF) e advogados de organizações indígenas e indigenistas reforçaram os argumentos jurídicos que demonstram a inconstitucionalidade do Parecer 001/2017, chamado pelos povos indígenas de “Parecer do Genocídio”, e lideranças reafirmaram o pedido por sua revogação imediata.

A segunda reunião com Mendonça nesta semana foi conseguida  no tenso encontro que ocorreu no dia anterior,  durante o Acampamento Terra Livre 2018, que terminou hoje, em Brasília.

Também participaram dessa nova conversa representantes do Ministério da Justiça (MJ), da Casa Civil e da Fundação Nacional do Índio (Funai). Uma série de compromissos foi firmado pelos órgãos e registrados em um documento. Os indígenas afirmam que a luta continua até o parecer cair.

“Enquanto eles estão fazendo esse diálogo interno, nosso povo está morrendo por conta desse parecer”, afirma Dorinha Pankará, uma das lideranças que participaram da reunião. “A ministra segue dizendo que o parecer não afeta as terras indígenas, só que os advogados e o MPF mostraram provas concretas em contrário”.

Apenas cinco lideranças foram autorizadas a participar da reunião. Apesar do pequeno número de indígenas e do fato de a reunião já estar marcada, o prédio e os corredores do órgão foram tomados por um grande contingente policial. Celulares de advogados e de indígenas foram recolhidos pela segurança e a presença de repórteres foi vetada. A medida foi considerada um desrespeito pelos indígenas.

“Chegamos e já foram recolhendo os nossos celulares. Abriram a minha bolsa, tivemos que tirar tudo, até os maracás. Nos sentimos muito constrangidos”, relatou Dorinha Pankará.

“Não gostei de chegar e ter toda a força polícia lá dentro, tirando os celulares e nos intimidando. Achei que foi muito desrespeitoso com as lideranças”, avaliou Kretã Kaingang.

Compromissos firmados

A segunda reunião com a AGU foi exigida pelos indígenas quando, no primeiro encontro, Mendonça disse que “não tem autonomia” para revogar o parecer. “A AGU disse que não poderia revogar o parecer porque ele foi assinado pelo presidente Michel Temer, e que só ele teria competência para fazer isso. Só que nós não fomos consultados sobre esse parecer, e sabemos que ele é bem desfavorável a nós”, explicou Kretã.

“Fizemos muito forte a cobrança de que o Conselho Nacional de Política Indigenista CNPI tem que ser reativado, inclusive para respeitar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse parecer está nos afetando diretamente e nunca fomos consultados”, afirmou Kaninari Apurinã.

A reativação do CNPI foi um dos pontos acordados na reunião. Dentro de 15 dias, o MJ e a Funai comprometeram-se a marcar com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) a primeira reunião do colegiado desde que Michel Temer assumiu a presidência.

Além disso, também ficou acertada a criação de um grupo de trabalho da própria AGU, com possibilidade de participação do MPF e dos advogados dos povos indígenas, para discutir o parecer.

No ano passado, o MJ anulou a portaria declaratória da Terra Indígena (TI) Jaraguá, em São Paulo, transformando-a na menor terra do Brasil. A norma da AGU foi usada para justificar a anulação.

“A advogada-geral da União e o ministro da Justiça interino também se comprometeram a deflagrar um procedimento para a revisão da portaria que anulou a demarcação do Jaraguá”, explicou Luiz Eloy Terena, assessor jurídico da APIB.

Além da TI Jaraguá, a AGU também se comprometeu a dar respostas a respeito de outras sete terras indígenas cujos procedimentos demarcatórios retrocederam por causa do parecer.

Outro compromisso firmado foi de que os órgãos presentes buscarão viabilizar uma melhor estrutura para a Funai e reforçar as equipes da Procuradoria da Funai e da Consultoria Jurídica do MJ.

Parecer inconstitucional

O Parecer 001/2017 força toda a administração pública a aplicar as medidas definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no caso Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) a todos os procedimentos demarcatórios – o que contraria decisões da própria corte e, na prática, inviabiliza as demarcações.

Mais uma vez, a ministra tentou convencer os indígenas que o parecer não prevê o “marco temporal”, tese segundo a qual os indígenas somente teriam direito à demarcação das terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988.

“Isso não é verdade”, explica Adelar Cupsinski, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “O marco temporal é um fundamento do parecer, porque ele é central nas decisões citadas pela AGU como referências a serem seguidas por toda a administração pública”.

Além do caso Raposa Serra do Sol, explica ele, outras três decisões do STF embasam o parecer, todas desfavoráveis aos povos indígenas – e todas ainda sendo questionadas com recursos ou ação rescisória, pois contêm fragilidades importantes. Essas decisões foram tomadas pela Segunda Turma do STF, da qual faz parte o ministro Gilmar Mendes, e serviram para anular a demarcação das TIs Guyraroka, Porquinhos e Limão Verde – em todos os casos, com base no marco temporal.

“O Parecer da AGU é um corpo estranho ao direito indígena e já foi suplantado por decisões do STF”, afirma Cupsinski. Ele informa que há cerca de 25 decisões que afastam o marco temporal e as condicionantes do caso Raposa, a maioria delas do STF, mas também do STJ e dos tribunais regionais. “As decisões citadas no parecer são muito específicas e contrariam a jurisprudência da Suprema Corte”, completa.

O MPF já emitiu nota técnica, em que afirma que o Parecer 001/2017 é inconstitucional e deve ser anulado. Outro dos compromissos firmados pela AGU na reunião foi o de responder ao Ministério Público e às petições de questionamento apresentadas ao órgão.

Sem revogação, luta continua

A exigência que levou milhares de indígenas a marchar até a AGU foi direta: revogação imediata do Parecer do Genocídio, que tem inviabilizado demarcações e gerado insegurança para os povos indígenas.

“A violência e as ações judiciais em favor dos ruralistas aumentaram em função desse parecer, e deixamos isso bem claro na reunião, assim como a questão dele ser utilizado para a anulação de demarcações”, afirmou Karaí Popygua, liderança Guarani Mbya da TI Jaraguá que participou das duas reuniões da AGU. “A ministra tentou dizer que o parecer é para agilizar as demarcações, mas para nós é um parecer da morte. Só quem comemorou ele é quem deseja nos roubar os nossos territórios”, explicou.

“Vamos aguardar para ver o que vai sair desses encaminhamentos, mas a gente sabe que a luta vai continuar”, resumiu Kretã Kaingang.

“Nós vamos continuar a nossa luta pela revogação do parecer”, conclui Karaí Popygua. “Não vamos mais aceitar novas mortes em função dele e vamos mobilizar os povos indígenas do Brasil inteiro nessa luta”.

Para a saúde da mulher e da criança indígenas sobram promessas e faltam soluções

Passado 1 ano e meio do prazo, que se esgota em 2019,  pouco foi feito e muito segue em instâncias consultivas no “Plano Nacional de Diminuição da Mortalidade Infantil Indígena”

Indígenas protestaram na Esplanada dos Ministérios contra o genocídio dos povos originários. Crédito: Christian Braga / MNI

Por Maurício Angelo / Mobilização Nacional Indígena (MNI)

Reduzir em 20% as mortes de bebês e crianças indígenas com até cinco anos de idade; ampliar para 90% as gestantes com acesso ao pré-natal; implementar as consultas de crescimento e desenvolvimento para crianças indígenas menores de 1 ano, chegando a 70%; ampliar para 90% o acompanhamento pela vigilância alimentar e nutricional das crianças indígenas menores de 5 anos; investigar ao menos 80% dos óbitos materno-infantil fetal; fortalecer e ampliar a assistência impactando nos óbitos evitáveis, causados, por exemplo, por doenças respiratórias, parasitárias e nutricionais; entregar Unidades Básicas de Saúde Fluviais que atenderão ribeirinhos de municípios nos estados do Amazonas e Pará.

Essas são algumas das promessas e ações anunciadas pelo Ministério da Saúde e SESAI em novembro de 2016, dentro do “Plano Nacional de Diminuição da Mortalidade Infantil Indígena”. A realidade é que, passado 1 ano e meio do prazo, que vai até 2019, pouco foi feito e muito segue em instâncias consultivas e de construção de iniciativas perdendo-se na burocracia e na falta de vontade política concreta. Prova disso é que, procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde e a SESAI se negaram a comentar os avanços ou não do Plano até aqui e também não forneceram dados atualizados sobre a mortalidade infantil indígena, um problema histórico dos povos originários do Brasil.

Se prestar atendimento em saúde de maneira ampla, eficaz e respeitando os métodos tradicionais dos povos indígenas é um desafio considerável, a saúde da mulher e da criança sofre ainda mais com os problemas de falta de profissionais qualificados, logística, estrutura, recursos e influência política que muitas vezes deixa de lado a qualidade do atendimento para favorecer interesses suspeitos.

O próprio Ministério da Saúde reconhece em edital público que “ainda é possível observar limitações no planejamento e gestão das ações e serviços para o alcance da cobertura ideal de saúde aos povos indígenas, em especial, no que se refere à atenção básica às mulheres, crianças e adolescentes indígenas, quando comparados com a cobertura da população nacional. A maior parte dos problemas relacionados à garantia do acesso e da qualidade no atendimento em terras indígenas está relacionada às dificuldades legais, logísticas e operacionais para instalação de infraestrutura adequada, deslocamento das equipes, abastecimentos de insumos e medicamentos, além da falta de preparo dos profissionais para atuar em contextos interculturais”.

Na apresentação do plano, o MS/SESAI também assume que “65% dos óbitos de bebês indígenas são provocados por doenças respiratórias, parasitárias e nutricionais. Apesar de nos últimos 15 anos o índice de mortalidade infantil indígena registrar queda de 58% – em 2000 era 74,61 mortes por mil nascidos vivos e atualmente é 31,28 – a mortalidade ainda é quase três vezes maior do que a média nacional, de 13,8 óbitos a cada mil nascidos vivos”.

Ainda segundo o MS, 15 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s) estão com índice de mortalidade acima dessa média: Maranhão; Yanomami; Xavante; Caiapó do Pará; Alto Rio Juruá; Alto Rio Purus; Altamira; Amapá e Norte do Pará; Médio Rio Purus; Rio Tapajós; Mato Grosso do Sul; Alto Rio Solimões; Tocantins; Porto Velho e Vale do Javari.

Criança indígena é atendida em campanha de vacinação ocorrida durante o ATL 2018. Foto: Leonardo Milano Mídia Ninja/MNI

Profissionais preparados esbarram em influências políticas

Dayane Bernardo Farias, do povo Terena, da Terra Indígena Buriti, do Mato Grosso do Sul, é enfermeira formada há dois anos mas que não consegue prestar atendimento ao seu povo por disputas políticas locais e processos de contratação duvidosos feitos pela Missão Caiuá, entidade terceirizada, com sede em Dourados, escolhida pela SESAI como responsável pelas contratações no MS e, até o início de 2018, em outros 19 DSEIS pelo país. “É doído falar, mas existe uma influência partidária da Caiuá e da SESAI muito grande lá dentro. Isso faz com que eu não tenha espaço para trabalhar. Já recebi propostas para mudar de lado, mas jamais vou me juntar aos ruralistas. Prefiro ficar sem trabalhar lutando pelo meu povo do que virar pro lado dos ruralistas e conseguir trabalho”, conta. Edmilson Canale, coordenador do DSEI do MS, teria sido indicado por ruralistas para ocupar o cargo.

Mesmo diante disso, Dayane conta que, no ano passado, as mulheres unidas conseguiram realizar por uma iniciativa própria uma assembleia de saúde indígena que reuniu mais de 450 mulheres, entre enfermeiras indígenas, brancas, parteiras e rezadeiras, para discutir a situação local e buscar um entendimento entre as diferentes partes envolvidas. “Nós como indígenas dentro da nossa comunidade sabemos a realidade para trabalhar com as mulheres. Nós entendemos ela, o branco não entende. Não temos a liberdade de se abrir com uma pessoa branca e não temos espaço dentro da própria comunidade como tem o branco lá dentro. Mas como o atendimento é feito pelos dois lados, precisamos construir esse entendimento”, relata Dayane.

Desvios de recursos geram também problemas de logística, como falta de transporte, muito comuns. Dayane conta que, pouco antes da entrevista, recebeu uma ligação informando que a equipe de saúde não estava conseguindo ir até a aldeia por falta de gasolina. A solução foi a comunidade conseguir um carro por conta própria para realizar o atendimento. Situação que se repete com frequência.

“Mas isso é só a nossa comunidade, em volta de nós são 9 aldeias que não têm apoio. A verdade é que recursos são desviados e esse tipo de situação acontece”, diz Dayane. No inicio de 2018, a SESAI iniciou chamamento público para escolher as entidades terceirizadas que irão realizar o atendimento à saúde indígena em todos os DSEI’s do Brasil. Embora tenha assumido publicamente em 2017 que não participaria de novos editais da SESAI e deixaria de atuar na saúde indígena, a Missão Caiuá – que recebeu mais de R$ 2 bilhões do governo federal entre 2012 e 2017 – acaba de vencer a nova licitação para seguir atuando no Mato Grosso do Sul.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Ministério Público Federal (MPF) tem questionado a formatação dos editais da SESAI, feitos sem consulta prévia e com indicações de favorecimento político. “A Caiuá ganhou porque é muito forte politicamente e também porque sabe responder exatamente o que os editais pedem, considerando a sua experiência. Os editais são formatados para isso”, confirma Dayane.

A enfermeira do povo Terena teme também que o processo de seleção siga confirmando a exclusão de profissionais indígenas. “Na semana passada fizeram uma seletiva só para indígenas, é a primeira vez que isso aconteceu no MS. Mas nosso receio é que, sendo formatada a prova de acordo com os interesses deles, apesar das poucas 5 vagas disponíveis, eles digam que nenhum indígena atendeu os critérios. Eles não querem que a gente passe. Independente do que acontecer, vamos seguir lutando por espaço lá dentro. Não é uma prova que vai fazer você trabalhar e mostrar seu conhecimento. Seu conhecimento é na prática”, diz Dayane.

As mulheres indígenas denunciam pressões médicas por cesarianas. Foto: Oliver Kornblihtt Mídia Ninja/MNI

No Baixo Tapajós, 6 mil indígenas precisaram buscar na Justiça o direito de serem atendidos

Se o atendimento é difícil em algumas regiões, em outras ele era simplesmente negado há bem pouco tempo. No Baixo Tapajós, o povo Kumaruara vem lutando para garantir atendimento de saúde há uma década. Desde a época em que a saúde era prestada pela Funasa (antes de 2010), o Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns já demandava um DSEI próprio. Foi preciso ocupar por uma semana o Pólo Base de Saúde em Santarém (PA) para que a SESAI cumprisse determinação judicial que ordenou que o atendimento de saúde dos 6 mil indígenas, sobretudo kumaruara, seja feito pelo DSEI Guatoc (Guamá-Tocantins). Na ocupação, um parente foi preso e celulares que registravam a atuação da Polícia Federal foram apreendidos.

“Desde então, de 2016 em diante, o que acontece são ações da SESAI esporádicas, equipes de Belém que vão periodicamente. O que a gente espera é que sejam contratadas equipes multiprofissionais em área fazendo esse atendimento com frequência, porque nossa demanda é de no mínimo 6 equipes”, afirma Luana Kumaruara. Novamente, os editais da SESAI em andamento geram insegurança. “Essa semana a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) saiu e entrou uma nova empresa do Maranhão. Nosso receio é de ter que começar todo o diálogo e o processo de seleção novamente”, diz Luana.

As condições de logística e falta de estrutura também atrapalham: sem barcos e lanchas disponíveis, com boa parte das aldeias localizadas em margens de rios, os indígenas contam apenas com suporte terrestre no momento, enquanto um pregão para adquirir transporte aquático ainda está em andamento. A demora de transporte adequado já levou muitos parentes a óbito.

Sobrecarregado, o DSEI Guatoc não tem estrutura e equipes para fazer o atendimento dos 6 mil indígenas que foram agregados via decisão judicial, considerando os 9 mil que já atendia anteriormente, totalizando, agora, 15 mil parentes. Profissionais de Santarém e Belém, destacados para atendimentos esporádicos, além de insuficientes, acabam desfalcando a própria base. Hoje, o acompanhamento que a maioria das mulheres indígenas do Baixo Tapajós recebe é de parteiras e curandeiras tradicionais. Não contam com o suporte adequado na base e nem realizam exames de pré-natal, por exemplo, fundamentais para o bom andamento da gestação. “Nossa briga hoje, enquanto não conseguimos o DSEI próprio, é de aumento do teto orçamentário via o nosso CONDISI do Baixo Tapajós. Ainda tem região lá que a SESAI nem botou os pés”, afirma Luana.

Do Amazonas para Brasília: a formação de uma liderança para a saúde da mulher indígena

Representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) na Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher junto ao Conselho Nacional de Saúde, Rayanne Cristine França, do povo Baré do Amazonas, jurou que não faria parte do movimento indígena.

Os motivos eram muitos: o pai foi do Controle Social do DSEI Alto Rio Negro e Rayanne cresceu vendo-o ser perseguido e criminalizado ao lado de outras lideranças indígenas que denunciavam a corrupção. Certa vez tentaram atear fogo na sua casa, além das constantes ameaças de morte por ruralistas e inimigos locais. Hoje aos 26 anos, Rayanne é enfermeira formada – uma entre os 35 estudantes indígenas dos cerca de 22 mil da Universidade de Brasília (UnB) na época, onde hoje faz mestrado em Políticas Públicas e desenvolvimento.

“Eu tinha o entendimento de que o movimento indígena não era pra mim. Não queria a vida que o meu pai levava e a gente levava com ele. Eu saio do Amazonas e venho para Brasília para estudar e quando menos espero me vejo dentro do movimento, com muita satisfação”, afirma Rayanne. Trabalhando especialmente pela saúde da mulher indígena, ela destaca a Segunda Conferência Nacional de Saúde da Mulher, em 2017, um marco porque havia 10 anos que uma conferência desse porte não era realizada. Diversas mulheres indígenas foram ouvidas pela primeira vez, a partir dos seus encontros locais e estaduais até a conferência nacional.

“Tudo isso foi um processo de muita insistência para dizer que a mulher precisa estar dentro desses espaços de controle social para que sua voz seja ouvida. Só as mulheres podem falar como vêem o parto, o puerpério, a sua integralidade a partir da sua visão da medicina tradicional no processo intercultural de integração com a medicina ocidental”, diz. Atualmente, as propostas aprovadas estão sendo consolidadas para serem apresentadas ao Conselho Nacional de Saúde, o que deve impactar diretamente nas políticas de saúde da mulher do Ministério da Saúde. Rayanne destaca a necessidade de mais participação de mulheres nas instâncias de decisão, trazendo a representatividade dos conselhos locais, onde são maioria, para o Fórum de Presidentes de Condisi, em que essa participação é bem menor.

Apesar da interlocução com a SESAI, as dificuldades relatadas encontram eco na experiência de articulação de Rayanne. “Segundo a política nacional, uma mulher não indígena tem direito a 9 consultas de pré-natal, enquanto uma mulher indígena tem hoje uma média de 4 consultas. Essa diferença significativa ocorre justamente pelas questões de recursos humanos, estrutura, logística e cultura que os povos indígenas sentem na prática”, afirma.

O fortalecimento não só da atenção básica, elemento fundamental para um bom atendimento à saúde das comunidades indígenas, como a estruturação de redes de média e alta complexidade devem influenciar diretamente na redução dos casos de morte materna, especialmente em menores de 17 anos, e na mortalidade infantil. “De modo geral, algumas iniciativas indicam melhoras, mas ainda temos um longo caminho para percorrer. São muitos percalços e barreiras a serem vencidas, não tem como uma equipe cuidar de 17 comunidades indígenas, o que ainda acontece hoje. Só a articulação da atenção básica com a média e alta complexidade pode garantir boa cobertura para a saúde da mulher”, diz.

Os profissionais, tanto indígenas quanto não-indígenas, precisam de um suporte maior em cursos de formação, como uma possível cooperação entre Ministério da Saúde e Ministério da Educação, mas também corrigir as distorções na hora da contratação para os não-indígenas, realidade de todo o país que não pode ser ignorada. “É preciso integrar esses novos profissionais indígenas que estão sendo formados, em como dar essa contrapartida. Hoje o processo acontece pelas ONGS e muitas vezes eles acabam não sendo selecionados por outras questões”, afirma.

A nova rodada de chamamento público para contratação de entidades gera insegurança entre os povos indígenas, reconhece. “Temos receio de continuar nesse modelo de ONGS porque sabemos do descaso com a saúde indígena de muitas dessas entidades. Ao mesmo tempo, uma alteração no modelo precisa ser pensada em conjunto, nenhum até agora agradou a todos”, diz. O que ela, assim como todos os povos indígenas esperam, é que essas ONG’s não olhem somente para o próprio bolso. “Espero que essas novas entidades tenham respeito pelos povos e queiram trabalhar com a saúde indígena sem pensar somente no bônus financeiro, que a gente sabe que é muito alto. Isso acaba contaminando muitas das pessoas que estão nessas organizações só de olho no capital e não pensam realmente na atenção e na qualidade da assistência”.

Plenária das Mulheres teve início após abertura oficial do ATL. Foto: Leonardo Milano Mídia Ninja/MNI

No encontro de culturas, o desrespeito da escolha da mulher indígena

É uma prerrogativa da política nacional de atenção à saúde indígena o respeito a cultura e práticas tradicionais, a integração sempre adequada entre a medicina milenar dos povos originários e a visão ocidental do atendimento. No entanto, as imposições na escolha do parto realizados contra as mulheres indígenas refletem bem esse desrespeito e violência.

Silvana Moreira Claudino é do povo Kaingang, do norte do Rio Grande do Sul, da aldeia Monte Caseros. Dividida entre os municípios de Ibiraiaras e Muliterno, as mulheres de cada localidade têm um atendimento muito diferente de acordo com o médico obstetra que as atende. Em Muliterno, o índice de cesáreas é baixo, já que são realizadas apenas quando necessárias. Já em Ibiraiaras, conta Silvana Kaingang, o único médico da região encaminha todas as mulheres para a cesárea, não respeitando o direito de escolha e causando uma situação de violência que está sendo levada ao MPF.

“Ele não respeita a vontade delas. Há mulheres que já estão na terceira cesárea e não podem mais ter filhos. Recentemente uma mulher não aceitou fazer cesárea e ele se recusou a atender, indicando-a para outra cidade. No meio do caminho, o parto precisou ser feito dentro da ambulância e a criança morreu. Por casos graves como esses que as lideranças estão acionando o Ministério Público”, conta.

Não por acaso, o Brasil é campeão mundial de cesarianas, ao lado da República Dominicana. Em 2016, dos 3 milhões de partos feitos no Brasil no período, 57% foram cesáreas. Enquanto no SUS os partos normais chegam a 60%, na rede privada esse número atinge mais de 80%. A recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de no máximo 15% de cesáreas. O Rio Grande do Sul, com 63% de cesáreas, é um dos estados campeões nacionais. Segundo estudos, grande parte das cesarianas é realizada de forma eletiva, sem fatores de risco que justifiquem a cirurgia, e antes de a mulher entrar em trabalho de parto. Cada semana a mais de gestação aumenta as chances de o bebê nascer saudável, permitindo maior ganho de peso, maturidade cerebral e pulmonar.

Para Silvana, a imposição médica em Ibiraiaras acontece em função do lucro. “Quanto mais cesáreas, mais ele ganha do município. Não tem diálogo entre a equipe que trabalha dentro da comunidade e a de fora. Falta integração da medicina tradicional com a ocidental. É muita imposição e as mulheres sofrem bastante. A maioria quer ter mais de um filho, mas acabam ficando restritas porque já fizeram várias cesáreas”, conta.

Rayanne faz coro e diz que uma das reivindicações é o aumento do número de estabelecimentos que oferecem parto humanizado para a mulher indígena, espaços com instalações propícias para um parto que respeite suas práticas tradicionais e onde o marido pode estar junto, por exemplo, além da presença da parteira.

Silvana, que estuda serviço social em Porto Alegre e faz estágio na atenção básica do subsistema, tem planos de retornar para a sua aldeia justamente para mudar essa realidade e ajudar a conscientizar as mulheres sobre isso. “Se alguém não fizer nada as mulheres vão continuar sofrendo esse tipo de violência contra o seu corpo e as suas escolhas”, afirma.

Como as histórias contadas aqui revelam, somente a luta em todas as instâncias – na base, nas universidades, nas políticas públicas, no controle social, nos órgãos consultivos e de decisão, na cultura, na mídia e no dia a dia – pode mudar esse cenário.

DOCUMENTO FINAL DO ACAMPAMENTO TERRA LIVRE 2018

O NOSSO CLAMOR CONTRA O GENOCÍDIO DOS NOSSOS POVOS

Depois de 518 anos, as hordas do esbulho, da acumulação e do lucro continuam massacrando e exterminando os nossos povos para tomar conta de nossas terras e territórios, dos bens comuns e de todas as formas de vida que, milenarmente, soubemos proteger e preservar.

Completados 30 anos da Constituição Federal de 1988, que consagrou a natureza pluriétnica do Estado brasileiro, os povos indígenas do Brasil vivem o cenário mais grave de ataques aos seus direitos desde a redemocratização do país. Condenamos veementemente a falência da política indigenista, efetivada mediante o desmonte deliberado e a instrumentalização política das instituições e das ações que o Poder Público tem o dever de garantir.

O direito originário sobre nossas terras, assegurado como cláusula pétrea pelo Artigo 231 da Constituição, vem sendo sistematicamente violado pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, não apenas com a completa paralisação das demarcações das terras indígenas, mas também mediante a revisão e a anulação dos processos de reconhecimento dos nossos direitos territoriais.

Ao negociar nossos direitos com bancadas parlamentares anti-indígenas, especialmente a ruralista, o governo ilegítimo de Michel Temer publicou o Parecer AGU nº 001/2017, que, de forma inconstitucional e contrária à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), tenta impor a tese do marco temporal, uma das mais graves violações contra os nossos povos. Sua condenável utilização tem servido para o retardamento dos já morosos processos de demarcação e, em determinados casos, para a anulação de demarcações já efetivadas e consolidadas. A tese desconsidera o histórico de expropriação territorial e de violência a que muitos dos nossos povos foram submetidos, durante séculos, inclusive na ditadura militar, como denuncia o relatório da Comissão Nacional da Verdade.

No âmbito do Poder Judiciário, tramitam milhares de ações propostas pelos nossos inimigos, estimuladas nos últimos tempos pela tese do marco temporal, e que tem o objetivo de suprimir o nosso direito territorial sem que possamos exercer o direito de acesso à justiça para a defesa dos nossos direitos.

Não aceitamos o loteamento político da FUNAI, especialmente para atender interesses da bancada ruralista e demais setores anti-indígenas, como as últimas nomeações de presidentes, incluindo a do Sr. Wallace Moreira Bastos, cujo currículo denota completa ignorância das questões indígenas. Igualmente, condenamos o intencional desmantelamento do órgão indigenista, com reduções drásticas de orçamento, que inviabiliza o cumprimento das suas atribuições legais, especialmente no que toca a demarcações, fiscalização, licenciamento ambiental e proteção de povos isolados e de recente contato. Na mesma toada, foram extintos espaços importantes de participação e controle social, principalmente o Conselho Nacional da Política Indigenista (CNPI).

Não bastasse isso, denunciamos o fisiologismo entre o governo federal e o Congresso Nacional e o desmonte deliberado do Estado brasileiro provocado pela Emenda Constitucional 95, que congela o orçamento por 20 anos. Destacamos a absoluta falta de implementação da PNGATI nos territórios, a extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e da Assistência Técnica Rural (Ater Indígena). Tais omissões impedem as imprescindíveis ações de etnodesenvolvimento, gestão ambiental e proteção das terras indígenas, resultando na intensificação da presença de atividades ilegais e danosas, como garimpo, exploração madeireira, arrendamento, loteamento, comercialização e apossamento de terras já demarcadas por não indígenas; tráfico de conhecimentos tradicionais e outras ameaças.

Denunciamos, ainda, a situação de calamidade da saúde indígena, fruto da precariedade do atendimento básico, do desrespeito às particularidades de cada povo indígena, da desvalorização da medicina tradicional, da falta de acesso a medicamentos e ao transporte para a realização de tratamentos, situação agravada pela utilização político-partidária da política e das instâncias responsáveis pela gestão da saúde indígena. Da mesma forma, denunciamos o descaso com a educação escolar indígena, manifesta na falta de respeito ao projeto pedagógico de cada povo, no não reconhecimento da categoria de professores indígenas, na falta de apoio à formação continuada desses professores, incluindo as licenciaturas interculturais, e na má qualidade das estruturas das escolas, ou na falta destas nas comunidades, bem como a falta de material didático compatível com as especificidades.

A atual conjuntura ainda impõe sérios riscos de retrocesso na legislação de proteção aos direitos dos povos indígenas. Para além do sempre presente fantasma da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, os esforços da bancada ruralista voltam-se no momento para uma tentativa de legalizar o arrendamento das terras indígenas, afrontando o direito constitucional ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre suas terras. Recorrem para isso a estratégias de desinformação e tentativas de divisão de povos e comunidades. Também está nessa agenda uma série de propostas de flexibilização do licenciamento ambiental voltadas a liberar empreendimentos em nossos territórios, como o PLS 654/2015, o PLS 168/2018 (ambos no Senado) e o Projeto de Lei (PL) 3729/2004 (Câmara dos Deputados). Não admitiremos a desconsideração de povos indígenas isolados, a restrição de avaliação de impactos ambientais apenas para terras indígenas homologadas, o caráter não vinculante da manifestação da FUNAI e a concessão automática de licença quando superado o prazo para manifestação do órgão indigenista, entre outras.

É esse contexto de hegemonia dos ruralistas e outros inimigos dos povos indígenas, em todos os poderes do Estado, que provoca o acirramento sem precedentes da violência contra os nossos povos e a criminalização das nossas lideranças que estão na frente das lutas de defesa dos nossos direitos, situação agravada pelo desmonte das instituições que tem o dever constitucional de proteger e promover os direitos indígenas.

Diante desse quadro sombrio de extermínio dos nossos direitos, nós, cerca de 3.500 lideranças indígenas, representantes dos mais de 305 povos indígenas de todas as regiões do país, reunidos no Acampamento Terra Livre 2018, exigimos das instâncias de poder do Estado o atendimento das seguintes reivindicações:

  1. Revogação imediata do Parecer 001/2017 da AGU / Temer;
  2. Revogação imediata da Emenda Constitucional 95, que congela para os próximos 20 anos o orçamento público;
  3. Realização urgente de operações para a retirada de invasores de terras indígenas já demarcadas e a efetiva proteção das mesmas;
  4. Demarcação e proteção de todas as terras indígenas, com especial atenção às terras dos povos isolados e de recente contato, assegurando o fortalecimento institucional da FUNAI;
  5. Dotação orçamentária, com recursos públicos, para a implementação da PNGATI e outros programas sociais voltados a garantir a soberania alimentar, a sustentabilidade econômica e o bem viver dos nossos povos e comunidades;
  6. Garantia da continuidade do atendimento básico à saúde dos nossos povos por meio da SESAI, considerando o controle social efetivo e autônomo por parte dos nossos povos;
  7. Efetivação da política de educação escolar indígena diferenciada e com qualidade, assegurando a implementação das 25 propostas da segunda conferência nacional e dos territórios etnoeducacionais;
  8. Arquivamento de todas as iniciativas legislativas que atentam contra os nossos povos e territórios;
  9. Garantia por parte das distintas instâncias do poder Judiciário da defesa dos direitos fundamentais dos nossos povos assegurados pela Constituição Federal e os tratados internacionais assinados pelo Brasil;
  10. Fim da violência, da criminalização e discriminação contra os nossos povos e lideranças, assegurando a punição dos responsáveis por essas práticas, a reparação dos danos causados inclusive por agentes do Estado e comprometimento das instancias de governo (Ministério de Direitos Humanos, Ministério da Justiça, Defensoria Pública) na proteção das nossas vidas;
  11. Aplicabilidade dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, de modo especial a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) incorporada ao arcabouço jurídico do país e que estabelece o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada sobre quaisquer medidas administrativas ou legislativas que os afetem.

Brasília – DF, 26 de abril de 2018

 

Articulação dos Povos Indígenas  do Brasil –APIB

Mobilização Nacional Indígena

 

Indígenas exigem ‘Demarcação Já’ em ato histórico na Esplanada dos Ministérios

Um rastro vermelho de tinta marcou a Esplanada dos Ministérios e chamou atenção pela violência cometida contra os povos indígenas no Brasil

Indígenas fizeram ato histórico na Esplanada dos Ministério contra o genocídio dos povos originários. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

Na manhã de quinta-feira (26), os cerca de 3 mil indígenas acampados, desde o início da semana, saíram em marcha e ocuparam o Eixo Monumental e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Reivindicando a retomada dos processos de demarcação de Terras Indígenas, delegações de todo o país fizeram um ato simbólico: a manifestação deixou manchado de vermelho o caminho, simbolizando o sangue das lideranças indígenas derramado no genocídio histórico cometido contra essas populações.

Os mais de 100 povos presentes no Acampamento Terra Livre (ATL) 2018 trouxeram reivindicações de suas comunidades, vindas de todas as regiões do Brasil. No final da caminhada, os indígenas protocolaram um documento no Ministério da Justiça (MJ), no qual repudiam a paralisação das demarcações de terra durante o governo Temer. O documento aponta o Parecer 001/2017 da AGU e a tese do Marco Temporal como instrumentos inconstitucionais utilizados para negar os direitos territoriais dos povos indígenas, duramente conquistados na Constituição de 1988. Os indígenas foram recebidos no MJ pela Polícia Federal e somente após uma longa negociação permitiram o protocolo do documento levado em nome da marcha.

Indígenas fizeram ato histórico na Esplanada dos Ministério contra o genocídio dos povos originários. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

“O parecer da AGU teve participação do Ministério da Justiça, da Casa Civil e da Funai também. No ato de ontem, na AGU, a gente pediu e exigiu que seja suspenso até que esse grupo se reúna para poder discutir o melhor encaminhamento. A gente não pode deixar os nossos parentes morrendo nas bases”, diz Kretã Kaingang sobre a necessidade de revogação do parecer oficializado pelo governo Temer, que, na prática, inviabiliza as demarcações de Terras Indígenas no Brasil.

Vagner Krahô Kanela, da Terra Indígena Mata Alagada (TO), explica a razão da tese ruralista do marco temporal ser uma ameaça para os indígenas: “é mais uma invenção para barrar as demarcações em curso, rever outras e desencorajar as novas demandas. No Tocantins, e no país todo, muitos povos foram expulsos à força, na bala mesmo. Então se ele não for derrotado, o governo brasileiro vai negar esse genocídio e praticar um novo”.

Documento protocolado

O documento protocolado no MJ denuncia, ainda, o loteamento de cargos na Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio do qual o governo Temer atende aos interesses da bancada ruralista no Congresso. Para o movimento, a paralisação das demarcações, somada ao sucateamento do órgão indigenista, tem aumentado a violência contra lideranças indígenas, muitas delas assassinadas por lutarem pela demarcação de seus territórios tradicionais.

O sucateamento da Funai não é um assunto novo, mas conforme explica Mário Nicácio, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), nos últimos dois anos a situação motiva “um avanço descontrolado de invasões em terras indígenas. Sem fiscalização, os madeireiros e grileiros se sentem motivados”.

Indígenas fizeram ato histórico na Esplanada dos Ministério contra o genocídio dos povos originários. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

Na Terra Indígena Karipuna (RO), em fevereiro deste ano, criminosos não identificados atearam fogo no Posto de Vigilância da Funai, a apenas 12 quilômetros da aldeia Panorama, abandonado por falta de recursos. Nesta terra, a grilagem é tamanha que o Ministério Público Federal (MPF) declarou o quadro como de “genocídio iminente” e o caso foi denunciado por Adriano Karipuna durante a 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas das Nações Unidas, em Nova York, em 18 de abril.  

Com o congelamento dos gastos primários pelos próximos 18 anos, um estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) aponta que ao fim deste período “teremos, na melhor das hipóteses, um orçamento equivalente ao valor, em termos reais, de 30 anos atrás”. Associada a esta medida do governo Temer, a presença ruralista na presidência e cargos de direção da Funai. “Tem gente dos ruralistas na Presidência da Funai e em diretorias estratégicas. Sem dúvida isso não é em nosso benefício, mas dos invasores”, diz Mário Nicacio. 

Marciano Rodrigues, do povo Guarani Nhandeva da aldeia Yvy Porã, no norte do Paraná, e membro da coordenação da Arpinsul, conta como isso afeta sua comunidade: “Estamos há 12 anos esperando que o processo avance. Hoje são mais de 30 famílias vivendo em apenas três alqueires”.

O cacique Juarez Munduruku trouxe para a marcha do ATL 2018 reivindicações e fortes dores nas costas. Promete descansar algumas semanas quando regressar à Terra Indígena Sawré Muybu (PA), mas sob o sol da Esplanada dos Ministérios reflete: “eu tava pensando que aqui no Ministério da Justiça se parece com uma história da época do Karosakaybu”.

Indígenas fizeram ato histórico na Esplanada dos Ministério contra o genocídio dos povos originários. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

“Quando Karosakaybu dividiu os Munduruku em vários animais, metade transformou em peixe, outra em porco, em pássaros. Karosakaybu começou a transformar também as árvores porque tem vida nelas igual tem na gente. Se você mata elas, morre e nunca mais volta. Se um madeireiro mata um cacique, uma história se acaba”, diz.

Os Munduruku são como as árvores, conclui cacique Juarez. “Nós somos as árvores fortes, como os ipês, um destino só para o que quer o governo, os ruralistas, os madeireiros, os garimpeiros. Somos árvores fortes, as mais antigas. Sempre estivemos aqui, não chegamos do mar não”, afirma o Munduruku.

No Médio Tapajós, lembra Alessandra Munduruku, há projetos para 43 usinas hidrelétricas (duas foram feitas) e 30 portos de soja, além de garimpos ilegais, retirada de madeira e palmito. “Em 19 de abril de 2016 publicaram o Relatório Circunstanciado, mas parou nisso. As mulheres estão preocupadas com o futuro de seus filhos”, destaca. Na região estão as terras Sawre Apompu, Juybu e Muybu (a única com Relatório Circunstanciado publicado).

Para a indígena, medidas como o Parecer 001 pretendem legalizar a invasão “dos territórios de vida para mudar para territórios de morte, com a derrubada de árvores, plantação de soja e milho transgênico”, afirma. Parecer este que se associa a falta de consulta prévia conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os Munduruku seguem em luta na defesa da autodemarcação que fizeram em protesto pela morosidade da demarcação inacabada: “O governo sabe qual é o mapa da vida Munduruku”.

Indígenas fizeram ato histórico na Esplanada dos Ministério contra o genocídio dos povos originários. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

Vitória dos povos indígenas no Judiciário contra parecer da AGU!

Indígenas assistem julgamento no TRF. Crédito: ascom TRF-1

Decisão contraria norma da Advocacia-Geral da União que inviabiliza demarcações. Justiça Federal reconhece direito dos índios Myky e Manoki às suas terras

Os povos indígenas tiveram, na tarde de ontem (25/4), uma importante vitória no Poder Judiciário em defesa de seus direitos territoriais. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) proferiu quatro decisões que contrariam o Parecer 001/2017, oficializado pelo governo Temer e que inviabiliza as demarcações das Terras Indígenas (TIs).

Em especial, as decisões fragilizam o “marco temporal”, polêmica tese ruralista pela qual as comunidades indígenas só teriam direito às terras que estivesse sobre sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Incluída no parecer da AGU, a tese desconsidera o histórico de violências e expulsões sofridas pelos povos indígenas.

As decisões judiciais de ontem também são um revés para a proibição de se revisar os limites das TIs, igualmente prevista na norma da AGU. Por motivos diversos, em alguns casos, a demarcação original não considera a área tradicional de ocupação  necessária à “reprodução física e cultural” das comunidades indígenas, conforme determina a Constituição. Nessas situações, é necessário rever as fronteiras da área.

As deliberações da Justiça Federal também reforçam que as medidas definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, para o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (RR), não devem ser aplicadas a outros casos obrigatoriamente. Essas determinações são a base do parecer da AGU.

Decisões posteriores ao caso Raposa-Serra do Sol do próprio STF e de outras instâncias confirmam o entendimento de que aplicação das condicionantes do caso e do “marco temporal”  deve ser  rejeitada.

Em uma das decisões, a desembargadora Daniele Maranhão, relatora dos casos, explica que não há ilegalidade nos processo de demarcação e que não cabe suspendê-los. “Titulações expedidas por ente estatal e eventual registro imobiliário não obstam o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupadas pelos índios, dada a natureza original dessa ocupação”, conclui.

“O direito dos índios é um direito originário sobre a terra. Nenhum título privado pode prevalecer sobre as terras indígenas”, reforça Felício Pontes, procurador regional da República da 1ª região e responsável pelos quatro casos.

“Essas decisões representam um acúmulo de forças em favor dos índios. Elas afastam a aplicabilidade da tese do marco temporal em casos similares ao da TI Raposa Serra do Sol”, assinala o advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Rafael Modesto.

Terras indígenas Manoki e Menkü

O TRF-1 decidiu, por unanimidade, rejeitar o recurso de produtores rurais contra o processo de revisão dos limites da TI Manoki e da TI Menkü, no noroeste do Mato Grosso. Ambos os casos tem a mesma situação jurídica. Com a decisão, O TRF1 determina que a Funai prossiga com a demarcação das TIs e com a desintrusão dos invasores não indígenas.  

“Nas demarcações de terras indígenas concretizadas antes da Constituição, é plausível a possibilidade de revisão no intuito de se adequar às normas constitucionais vigentes”, diz uma das decisões.  

O povo Iranxe Manoki teve o território de 46,6 mil hectares reconhecido em 1969, mas a área de ocupação tradicional soma cerca de 253 mil hectares, onde há antigos aldeamentos e roças, cemitérios e matas nativas. A terra dos Myky, a TI Menku, foi homologada em 1987 e também deixou boa parte do território tradicional de fora de sua delimitação.

A reivindicação pela ampliação terra é uma demanda antiga dos índios. A exclusão dessas áreas coloca em risco sua sobrevivência e a reprodução de seu modo de vida tradicional.

Os fazendeiros da região haviam questionado a ampliação das áreas, alegando a existência de títulos e fazendas inviabilizaria o reconhecimento da ocupação tradicional.

A advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana de Paula lembra que essas demarcações foram feitas antes da promulgação da Constituição de 1988 e não tiveram como base um estudo antropológico. Portanto, não foi possível identificar exatamente qual a área necessária para reprodução física e cultural das comunidades.

“Essas populações foram confinadas em um território muito pequeno. Os indígenas sempre disseram que a principal parte de suas terras tinha sido desconsiderada na demarcação”, argumenta a advogada. “Como a Constituição de 1988 instaura uma nova ordem jurídica, é possível um reestudo para adequar as áreas aos novos parâmetros constitucionais”, conclui.

Indígenas pedem rejeição de projeto ruralista de licenciamento ao presidente do Senado

Presidente do Senado recebe lideranças indígenas. Crédito: Mobilização Nacional Indígena

Na manhã desta quinta-feira (26), lideranças indígenas pediram ao presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), a rejeição do Projeto de Lei nº 168/2018, que prevê o desmantelamento do licenciamento ambiental e ameaça a demarcação das Terras Indígenas (TI).

De autoria do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), a proposta prevê que a Fundação Nacional do Índio (Funai) só se manifeste em processos de licenciamento ambiental de obras ou empreendimentos econômicos que afetem TIs “homologadas”, isto é, com a demarcação finalizada. Impactos em áreas em etapas anteriores do processo demarcatório – “em identificação”, “identificada” e “declarada” – e suas comunidades sequer seriam considerados, se o projeto for aprovado.

A proposta ruralista ameaça pelo menos 223 TIs nesses estágios do procedimento de demarcação, na eventualidade de serem planejados ou implantados empreendimentos econômicos em suas fronteiras. Os números constam de uma nota técnica entregue ao senador pelas lideranças indígenas e produzida pelo Instituto Socioambiental (ISA).

“Queremos ser consultados, queremos ser ouvidos. Peço que o senhor barre estes projetos de lei. Nós reivindicamos respeito às nossas causas. O projeto de lei 168, do Licenciamento Geral, não está sendo amplamente discutido com os povos indígenas”, disse Mario Nicácio Wapichana, de Roraima.

“São necessárias emendas ou que seja feito um requerimento de nove senadores para que o projeto [do licenciamento] vá a plenário. Estou atento às suas causas”, respondeu Oliveira.

No encontro com o parlamentar, Wapichana, Almerinda Ramos de Lima Tariano, do Amazonas, e Valcélio Terena, do Mato Grosso do Sul, falaram sobre a 15ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) e a preocupação da mobilização com o retrocesso nos direitos indígenas e nas políticas indigenistas, em especial de saúde e educação.

Os três participam da mobilização, que reuniu mais de três mil indígenas de todo o país, no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília, durante esta semana. O acampamento termina hoje (26/4).  Enquanto os indígenas encontraram-se com o parlamentar, os participantes do ATL faziam um protesto ao longo da Esplanada dos Ministérios e em frente ao Congresso contra o genocídio dos povos originários e pela retomada das demarcações.

O senador Paulo Rocha (PT-PA) também participou do encontro.

PL da Cana

As lideranças indígenas também questionaram Oliveira sobre o Projeto de Lei do Senado (PLS) 626/2011, do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que prevê autorização do plantio de cana-de-açúcar na Amazônia. Eunício Oliveira lembrou que o projeto já havia sido retirado de pauta e deu a entender que não há consenso para a sua votação.

Caso aprovada, a proposta pode acelerar o desmatamento na região, o que também coloca em xeque a proteção das TIs. Ela também coloca em risco a imagem dos biocombustíveis do Brasil no mercado internacional. O atual zoneamento da cana, que restringe seu cultivo na Amazônia, foi feito exatamente como resposta a ameaças de barreiras tarifárias à produção nacional.

Almerinda Tariano aproveitou a conversa para criticar o machismo dos políticos brasileiros. “Nós, mulheres, temos conseguido este espaço para sermos ouvidas. A gente traz este apelo. O senhor, que está na presidência, tem que deixar as mulheres falarem. São poucas mulheres aqui. Eu vejo que elas não são ouvidas, respeitadas. Ajude a respeitar”, afirmou.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em protesto contra genocídio, indígenas deixam rastro de ‘sangue na Esplanada

Os mais de 3 mil indígenas que participam da 15ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) saíram em marcha pela Esplanada dos Ministérios, na manhã de hoje (26), e deixaram um rastro de “sangue” em uma das principais vias da capital federal. Trata-se de um pouco de tinta vermelha que foi deixada nas ruas de Brasília. O ato é uma referência simbólica ao genocídio indígena que eles denunciam.

Durante a marcha, que transcorreu de forma pacífica, uma grande faixa (24m x 12m) foi hasteada em frente ao Ministério da Justiça com os dizeres “Chega de genocídio indígena – Demarcação Já!”. Ao abrirem a faixa, lideranças declararam: “a Funai é dos indígenas, não dos ruralistas”.

Os representantes de mais de cem povos, das cinco regiões do Brasil, presentes no ATL demandam o respeito aos seus direitos constitucionais, o fim da criminalização de suas lideranças, a revogação urgente da Portaria 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), e a demarcação imediata de todas as terras indígenas, além de denunciarem a falência da política indigenista e a inviabilização dos processos demarcatórios.

“Este rastro de ‘sangue’ é um marco que deixamos aqui na Esplanada e representa toda a violência imposta pelo Estado aos povos originários deste país na morosidade da demarcação das nossas terras, dentre outros ataques. Diversos assassinatos têm ocorrido país afora, além de um cruel processo de criminalização das lideranças. Mas apesar desta conjuntura tão emblemática, nós, povos indígenas, vamos sempre resistir e lutar pelos nossos direitos, como aprendemos com nossos ancestrais e nossos guerreiros”, afirma o cacique Marcos Xukuru, de Pernambuco.

O tema desta 15ª edição do ATL é “Unificar as lutas em defesa do Brasil Indígena – Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos”. O Acampamento é realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e conta com o apoio de organizações indigenistas e socioambientais. O encerramento do evento acontece hoje à noite (26).

Ministra da AGU reconhece que “não tem autonomia” para revogar Parecer do Genocídio

Ministra Grace Mendonça afirmou aos indígenas que parecer é para levar segurança jurídica aos povos. Resultado: sete demarcações devolvidas à Funai  Foto: Tiago Miotto/MNI

Reunião com lideranças ocorreu após grande ato, quando milhares de indígenas cobraram da AGU a revogação do parecer que inviabiliza demarcações

Nesta quarta-feira (25), durante reunião com lideranças indígenas do Acampamento Terra Livre, a ministra Grace Mendonça afirmou não ter autonomia para revogar o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU). “Não temos autonomia para decidir aqui e bater o martelo por conta própria”, afirmou a ministra da AGU.

Depois de admitir que a AGU não teria autonomia para revogar a portaria, indicando que ela depende do aval político do governo, a ministra comprometeu-se a convocar uma reunião para o dia seguinte com representantes do Ministério da Justiça, da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério Público Federal (MPF) – que já pediu a anulação do parecer, por considerá-lo inconstitucional – e lideranças indígenas.

Os indígenas aceitaram a reunião, sem deixar de questionar o fato de que o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), que deveria ser consultado sobre ações que afetam os povos indígenas, teve apenas uma plenária realizada durante o governo Temer, mas que sequer chegou ao fim.

Manifestação segui até a AGU pela Esplanada dos Ministério. Foto: Matheus Alves/MNI

A reunião aconteceu entre os indígenas e a ministra da AGU ocorreu após uma marcha reunindo cerca de 3 mil indígenas, acampados em Brasília desde o início da semana no Memorial dos Povos Indígenas, que pediam a revogação do Parecer. O protesto desceu o Eixo Monumental, ocupando três das seis faixas da pista, seguindo até a Esplanada dos Ministérios, de onde partiu para o Setor de Autarquias, à sede da AGU.

O Parecer 001 da AGU, em vigor desde julho de 2017, determina que toda a administração pública federal adote as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol nos processos de demarcação de terras indígenas. Um dos principais pontos do parecer é o Marco Temporal, tese ainda em discussão nas instâncias do judiciário e que condiciona o direito à terra tradicional somente para as ocupadas pelos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.

Kretã Kaingang e Marcos Xukuru: ambos tiveram os pais assassinados por conta da luta pela terra. Foto: Tiago Miotto/Cimi

“O ato só tem um objetivo: a revogação do Parecer 001 da AGU que paralisou todas as demarcações de terra”, diz Kretã Kaingang, da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul). A ministra, alegando estar em outra reunião, enviou assessores para receber os indígenas, que se negaram e afirmaram que só saíram da AGU depois de se reunir com ela, não com emissários.

“Fica claro que o setor do agronegócio está influenciando diretamente nas decisões do governo e da Advocacia-Geral da União. Esse “parecer do genocídio” ele tem autoria, e essa autoria é do Congresso Nacional”, afirma Dinamã Tuxá, membro da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Cantos e rituais contra o genocídio

Enquanto se desenrolava a reunião entre a comissão de lideranças indígenas e a ministra da AGU, as centenas de indígenas permaneceram em vigília na frente do prédio. Entre cantos e rituais, as expectativas envolviam a anulação do parecer. “A AGU não pode colocar em risco as gerações futuras do nosso povo acabando com a demarcação dos nossos territórios”, afirma Weibe Tapeba, do Ceará.

Indígenas permaneceram na frente do prédio da AGU, em vigília. Foto: Christian Braga/MNI

Para o indígena é a estratégia de transformar o marco temporal em um “fato dado”. Ao lado de seus familiares, Weibe explica que a terra onde vivem sofre uma enxurrada de pedidos judiciais, impetrados por fazendeiros e construtoras, para que tenha os efeitos da portaria declaratória sustados. “Após o Parecer 001, estes invasores se sentiram mais confortáveis. Há parentes que vivem em terras onde só falta homologar e estão preocupados”.

Caso de Tupã Mirim Guarani Mbya, da Terra Indígena Tenondé Porã. “Só falta homologar, mas é claro que corre risco. Com essa medida, nenhuma terra indígena do país está garantida. Porque não é apenas a demarcação, mas a preservação também”. Tupã se refere às notícias que ouviu dos demais povos durante o ATL 2018 referente às invasões de madeireiros, garimpeiros, grileiros e empreendimentos estatais.

“O que queremos na verdade é a vida, a vida das futuras gerações. O que a AGU tá fazendo é um genocídio contra os povos indígenas. Por isso o parecer é o Parecer do Genocídio”, conclui. Os jovens Guarani Mbya permaneceram todo o tempo da vigília em rituais e danças, carregando a faixa pela demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, dos Mbya de Santa Catarina. Rezadores Guarani e Kaiowá, mais velhos, os acompanhavam.

Na pisada do Toré, os povos indígenas do Nordeste seguraram rituais durante todas as horas em que estiveram na AGU. O cacique Sandro Potiguara, da Paraíba, saiu de um destes momentos para explicar que por duas vezes pediram revisão da Terra Indígena Monte Mor, uma das quatro do povo. “Esse parecer promove uma onda de pedidos do tipo, para que enquadrem nas condicionantes. A situação se tornou insustentável e o parecer precisa ser anulado”.

Do lado de dentro, tensão

“Levante a mão quem tem parentes aqui que já morreram na luta pela terra”, pediu o advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar Cupsinski. Com quase todas as mãos indígenas da sala erguidas, ele prosseguiu: “É isso, ministra, que está acontecendo. A cada imbróglio que tem, as milícias no campo agem”.

Esse foi um dos primeiros momentos da tensa reunião entre a Advogada-Geral da União Grace Mendonça e a comissão que representava os milhares de indígenas que se manifestavam contra o Parecer 001 do lado de fora da AGU.

Ao todo, participaram da reunião 25 lideranças indígenas e três advogados. Todos – especialmente os indígenas – foram muito firmes em exigir a revogação imediata do parecer.

A advogada Joênia Wapichana mostra para a ministra da AGU o óbvio: o parecer inviabiliza as demarcações. Foto: Tiago Miotto/MNI

Joênia Wapichana, que foi a primeira advogada indígena a fazer uma sustentação no Supremo Tribunal Federal (STF), no caso Raposa Serra do Sol, relembrou que a Suprema Corte determinou que as condições impostas àquela demarcação não deveriam se estender às demais terras indígenas. O parecer, por isso, contraria a jurisprudência da corte.

“Nem para Raposa Serra do Sol algumas dessas condicionantes se aplicam, porque elas restringem direitos. Colocar isso para todas as terras indígenas é uma crueldade, porque ela nega a vida e nega os direitos dos povos indígenas”, defendeu a advogada indígena.

No início da reunião, a ministra mostrou-se intransigente. Defendeu que tudo era uma questão de “esclarecimento” sobre o real sentido do parecer, que teria surgido para que “houvesse uma diretriz para que a política de demarcação pudesse avançar”.

“Não foi a intenção da AGU em nenhum momento inserir um parecer para paralisar as demarcações”, defendeu-se. “Muitas vezes joga-se para o parecer uma conclusão que o parecer não dá respaldo”.

Carron Pataxó durante reunião com a ministra da AGU. Foto: Tiago Miotto/MNI

Ela chegou a afirmar que o parecer não abordaria o marco temporal, um dos principais pontos criticados pelos povos indígenas. “O parecer não fala de marco temporal”, sustentou.

“Pela ordem, ministra. Essa questão é central”, questionou o advogado do Cimi. “Se for o caso, podemos ler o parecer aqui”.

“O fato de o Executivo ter um instrumento para restringir o direito à demarcação somente a partir de 1988 está colocando em risco as vidas indígenas que dependem da terra”, questionou Joênia Wapichana.

“No caso quilombola, recentemente, foi expurgada a tese do marco temporal de forma majoritária”, completou Adelar Cupsinski. Ele citou também as recentes decisões do STF no caso das ACOs 362 e 366, quando os ministros do pleno reafirmaram os direitos originários dos povos indígenas.

“O Parecer 001 tem que ser revogado, porque ele vai contra a jurisprudência do Supremo”, resumiu a advogada Wapichana.

Demarcações já são afetadas pelo Parecer

As consequências do Parecer 001 já são sentidas pelos povos indígenas em seus territórios.

O advogado do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Bruno Morais trouxe a informação de que há sete procedimentos administrativos em estágios avançados do processo de demarcação que foram devolvidos para a Funai, com pedidos de diligências baseados no Parecer 001 da AGU.

“O parecer surgiu sob a justificativa de acabar com a insegurança jurídica, mas está ocorrendo o contrário”, argumentou.

“Para cumprir as diligências, o pessoal da Funai disse que poderia ter que refazer os estudos. Foram trabalhos que levaram anos, envolveram tempo e dedicação e agora teriam que ser refeitos”, explicou. “Nenhuma outra medida além da revogação do parecer garante a segurança jurídica das demarcações”.

A noite caiu iluminada pelas velas dos indígenas em vigília. Foto: Tuane Fernandes/MNI

Duas das terras em processo avançado de demarcação que retrocederam para a Funai foram a TI Morro dos Cavalos, dos Guarani Mbya, em Santa Catarina, e a TI Tupinambá de Olivença, na Bahia – que tem até uma decisão judicial determinando a publicação de sua portaria declaratória, competência do Ministério da Justiça.

Outra terra diretamente afetada pelo parecer foi a TI Jaraguá, também dos Guarani Mbya, em São Paulo. Com base no parecer da AGU e em um suposto erro administrativo, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, anulou a portaria declaratória, transformando-a na menor terra indígena do país, com apenas 1,7 hectare.

“Um procedimento que nunca foi feito antes na história, que é anular uma portaria, o governo conseguiu fazer se fundamentando no seu parecer. Não aceitamos que você venha aqui nos dizer que é a favor do nosso direito, porque depois que a nossa demarcação foi anulada, nós temos enfrentado na aldeia todo tipo de violência”, questionou Karaí Popygua.

“Sabe quem é que tá colocando as mãos pra cima, comemorando o parecer? É o Luís Carlos Heinze, os ruralistas!”, afirmou Luís Salvador Kaingang, conhecido como Saci.

Ele mencionou que o parecer foi a base de uma decisão da Justiça Federal de Erechim que anulou, em primeira instância, a demarcação da TI Passo Grande do Rio Forquilha. “Que estrago que esse parecer causou para as populações indígenas no Brasil”.

AGU sem autonomia se compromete com reunião

“Aqui vocês não tem na Advocacia-Geral da União um inimigo. Não estamos aqui para prejudicá-los”, chegou a afirmar a ministra Grace Mendonça.

“Para mim, hoje, a AGU é sim um inimigo”, rebateu Kahu Pataxó. “São vocês que tão dando armando os inimigos contra a gente. Os pistoleiros da minha região só estão alvoroçados por causa desse parecer. Nós estamos preparados para resistir, e eu prefiro morrer aqui na mão da polícia, lutando contra o parecer, do que ver meu povo morrendo na mão de pistoleiro lá!”.

“Nós temos a consciência, doutora, que esse governo não vai ser favorável à gente. Quem são os ministros? São todos colocados por Michel Temer. Se ele quisesse escutar a gente, ele tinha colocado para funcionar o CNPI, já que todos esses órgãos participam dele”, indignou-se Ednaldo Tabajara.

Cacique Marcos Xukuru informa o resultado parcial da reunião. Foto: Tiago Miotto/MNI

“Em nenhum momento, quando foi editado esse parecer, os povos indígenas foram chamados para participar”, ressaltou Joênia Wapichana, chamando atenção para a violação ao direito de Consulta Livre, Prévia e Informada dos povos indígenas. “Isso já começa com o desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.

A noite caiu sobre o prédio da AGU, iluminada pelas velas acesas pelos indígenas que ficaram do lado de fora. Com a confirmação da reunião, as lideranças da comissão juntaram-se ao grande grupo que ainda aguardava, em vigília, o desfecho da reunião. Desfecho que só ocorrerá, na verdade, com a anulação da Portaria 001.