Arquivo da tag: Direitos Indígenas

Lideranças indígenas e representantes de comunidades tradicionais fazem noite de vigília dentro da Câmara

Indígenas e lideranças de comunidades tradicionais ocupam plenária da Câmara por uma madrugada (Gilberto Vieira / CIMI)
Indígenas e lideranças de comunidades tradicionais ocupam plenária da Câmara por uma madrugada (Gilberto Vieira / CIMI)

A Câmara Federal viveu mais um dia triste na recente história de desmandos e autoritarismos praticados pelo atual presidente, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Indígenas, quilombolas e representantes de outras comunidades tradicionais ocuparam pacificamente, em vigília, durante toda essa madrugada, um dos plenários do corredor de comissões da Câmara dos Deputados, em Brasília. Cunha chegou a ordenar a retirada à força dos manifestantes pela Polícia Legislativa, mas desistiu da ação, segundo o deputado Paulo Pimenta (PT-RS).

A plenária foi sitiada pelas forças policias, e o ar-condicionado e as luzes da sala que não tem sem janelas foram desligados com o intuito de acabar com o protesto pacífico iniciado por cerca de 200 indígenas, quilombolas, pescadores e camponeses da Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais.

“Nós vamos permanecer e vamos fazer uma vigília pelos assassinatos, pelos estupros, pelas terras não demarcadas, pelas políticas públicas não colocadas em nossos territórios, nós queremos uma resposta dessa casa!”, discursou Agnaldo Pataxó, no final da tarde de ontem, no encerramento de uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM).

A permanência da mobilização seguiu no interior da Câmara madrugada adentro e um ato aconteceu às 7 horas desta terça-feira, 6, no estacionamento do Anexo 2 da Câmara Federal, para marcar o fim da vigília.

O presidente da Câmara se negou a receber as lideranças, que decidiram iniciar a vigília. Entre cantos rituais e falas de denúncias, chegou a informação de que a polícia tinha sido acionada por Cunha e a Tropa de Choque estava pronta para retirar todos e todas à força. Pelas redes sociais, o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, deputado Paulo Pimenta (PT/RS), confirmava as informações e ressaltava o clima tenso.

Numa tentativa de evitar a ação policial, Pimenta reabriu a sessão da Audiência Pública, iniciada às 15 horas, sobre a ação de milícias armadas contra povos indígenas, quilombolas e camponeses. “Então cortaram o microfone, o ambiente ficou abafado com o ar desligado e logo a luz foi cortada. Nesse momento, apareceram os policiais do Choque na porta do plenário”, conta Cléber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Além das lideranças de povos e comunidades tradicionais, estavam no Plenário parlamentares e a coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão Deborah Duprat, da Procuradoria-Geral da República (PGR). Mesmo na escuridão, indígenas passaram a dançar o Toré e a cantar suas rezas. Os presentes se alternavam no ‘gogó’ e seguiram com a audiência pública denunciando a ação criminosa e assassina contra as comunidades. A imprensa foi proibida de chegar perto do Plenário. Do lado de fora da Câmara, jornalistas e apoiadores da causa indígena se aglomeraram esperando o desfecho da situação.

Nas redes sociais, a solidariedade tomou conta de centenas de postagens e mensagens de apoio a todos e todas que mantinham a vigília, além de frases de repúdio ao presidente da Câmara. Para a imprensa, a assessoria de Cunha afirmou que o presidente da casa não havia solicitado a Tropa de Choque, mesmo com fotos desmentindo a informação, mas que de fato havia solicitado o desligamento da energia elétrica e do ar-condicionado com o objetivo de que todos e todas saíssem de ‘forma pacífica’. Pacífica, porém, era a vigília que reivindicava a demarcação de terras indígenas e em posição contrária à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, além de denunciar a ação de milícias e grupos de extermínio contra as lideranças em luta por direitos.

De acordo com dados da violência no campo sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos últimos 10 anos, povos indígenas e comunidades tradicionais enfrentaram 5.771 conflitos; 4.568 pessoas foram vítimas de violência; 1.064 sofreram ameaças de morte; 178 sofreram tentativas de assassinato e 98 foram assassinadas.

Por outro lado, a vigília pretendia lembrar dos 27 anos da Constituição Federal e do quanto a ‘Carta Cidadã’ ainda não garantiu direitos e tampouco cidadania para os povos e comunidades tradicionais – e já vem sendo desconstruída conforme os interesses de grupos políticos e econômicos. Daniel Guarani e Kaiowá lembrou o sofrimento de seu povo no Mato Grosso do Sul e lembrou que no Brasil os direitos de uns valem mais do que os direitos de outros: “Uma propriedade vale mais que uma vida? No meu estado, um boi vale mais que a vida de um índio”. Conforme o deputado Paulo Pimenta, em vídeo nas redes sociais, a vigília transcorreu de forma pacífica e a violência é responsabilidade do presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

Aos poucos, com pressões surgidas de todos os lados, Cunha não seguiu adiante com a desocupação forçada, mas não pediu a religação da energia elétrica e do ar refrigerado. Mesmo no escuro, como dezenas de pessoas lembraram nas redes sociais do poema de Thiago de Mello, todos e todas cantaram. Segue o poema:

Faz escuro mas eu canto,
Porque a manhã vai chegar
Vem ver comigo, companheiro,
A cor do mundo mudar
Vale a pena não dormir para esperar
A cor do mundo mudar
Já é madrugada,
Vem o sol, quero alegria,
Que é para esquecer o que eu sofria
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração
Vamos juntos, multidão,
Trabalhar pela alegria,
Amanhã é um novo dia

CARTA PÚBLICA AOS CANDIDATOS E CANDIDATAS À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

A relação do Estado e da sociedade brasileira com os povos indígenas, mesmos com os novos paradigmas constitucionais que colocaram fim ao integracionismo, reconhecendo o caráter multiétnico e pluricultural do Brasil, em 1988, tem sido marcada por princípios e práticas colonialistas, autoritárias, racistas, preconceituosas e discriminatórias, subestimando a sociodiversidade e a contribuição dos mais de 300 povos indígenas, falantes de 274 línguas, e dos territórios indígenas ao país.

Ao invés de efetivar os direitos indígenas assegurados pela Carta Magna (Artigos 231 e 232), sucessivos governos tem se dobrado aos interesses do capital, dos setores vinculados ao agronegócio, às mineradoras, às madeireiras, às empreiteiras e grandes empreendimentos que impactam as terras indígenas, e outros tantos empreendedores, que visam a apropriação e exploração descontrolada dos territórios e das riquezas neles existentes: os bens naturais, os recursos hídricos, a biodiversidade, o patrimônio genético e os conhecimentos e saberes milenares dos nossos povos. Em razão dessa perspectiva os nossos povos tem sido considerados entraves e empecilhos ao (neo) desenvolvimento, que governantes e donos do poder econômico querem implementar a qualquer custo. Ataques sistemáticos, de regressão e supressão dos direitos indígenas verificam-se nos distintos poderes do Estado e na sociedade, notadamente nos grandes meios de comunicação. A flexibilização ou mudança na legislação indigenista e ambiental está em curso por meio de Projetos de Lei (PL 1610, da mineração em terras indígenas, PL 7735/2014, do Patrimônio genético, entre outros), Emendas constitucionais (PEC 215, PEC 038 etc.), Portarias (Portaria 303, Portaria 419, Minuta de Portaria para mudar os procedimentos de demarcação das terras indígenas), Decretos (Decreto 7957). Ao mesmo tempo, lideranças e comunidades indígenas que lutam na defesa de seus direitos à terra são criminalizadas, vitimas de assassinatos, prisões arbitrarias e ameaças de morte.

Diante dessa realidade, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, vem de público apresentar aos candidatos e candidatas à Presidência da República, as considerações abaixo, querendo saber se estes terão de fato compromisso para reverter o atual quadro de ameaças aos direitos dos povos indígenas assegurados pela Constituição Federal, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada há 10 anos ao arcabouço jurídico do país e outros tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas. Ao mesmo tempo que assumem o compromisso político de colocar a questão indígena na centralidade das políticas do Estado, atendendo as seguintes reivindicações:

  1. Demarcação de todas as terras indígenas. Há um passivo de mais de 60% das terras indígenas não demarcadas, situação que gera conflitos desfavoráveis para os nossos povos.

A demarcação implica em instalar grupos de trabalho, publicação de relatórios, portarias de identificação, portarias declaratórias, demarcação física, homologação e registro em cartório o na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).

  1. Proteção, fiscalização e desintrusão das terras indígenas, assegurando condições de sustentabilidade aos nossos povos, na perspectiva da segurança e soberania alimentar, e considerando a especificidade étnica e cultural de cada povo e território indígena. Que a efetivação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas – PNGATI, se torne realidade para todos os nossos povos e que seja garantido o reconhecimento da categoria profissional e remuneração justa dos Agentes Indígenas Ambientais e Agroflorestais Indígenas.

Com relação ao tema da demarcação, são inúmeros os povos que estão em estado de vulnerabilidade, mas é preciso resolver com urgência o caso crítico dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, principalmente os Guarani Kaiowá, submetidos a um processo vil de etnocídio e extermínio a mando de fazendeiros e representantes do agronegócio, sob olhar o omisso e por vezes conivente dos governantes de turno.

Para cumprir com a responsabilidade de demarcar e proteger as terras indígenas, é preciso que o governo fortaleça a Fundação Nacional do Índio – Funai, sucateada até o momento e objeto de ataques por parte dos inimigos dos povos indígenas.

  1. Inviabilização de todas as iniciativas antiindígenas que buscam reverter ou suprimir os direitos constitucionais dos povos indígenas no Congresso Nacional (PECs, PLs), sob comando da bancada ruralista aliada a outros segmentos como o da mineração e o das igrejas fundamentalistas, que se apóiam mutuamente até para atacar a cultura e espiritualidade dos nossos povos.
  1. Impulsionar uma agenda positiva que alavanque a efetivação do texto constitucional, por meio da tramitação e aprovação da lei infraconstitucional – o Novo Estatuto dos Povos Indígenas – que deverá nortear todas as políticas e ações da política indigenista do Estado.
  1. Aprovação, ainda, do Projeto de Lei e efetivação do Conselho Nacional de Política Indigenista, instância deliberativa, normativa e articuladora de todas essas políticas e ações atualmente dispersas nos distintos órgãos de Governo.
  2. Aplicação da Convenção 169 em todos os assuntos de interesse dos povos indígenas, tanto no âmbito do Executivo como no Legislativo, assegurando o direito ao consentimento livre, prévio e informado, baseado nos princípios da boa fé e do caráter vinculante do tratado, para superar práticas autoritárias que tem minimizado este direito ao equiparar a consulta a reuniões informais, oitivas ou eventos de informação. Foi assim no caso do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte e assim quer se fazer com relação ao Complexo do Tapajós e outros tantos. É necessário restituir aos povos indígenas a sua autonomia e o exercício de seus mecanismos próprios de deliberação e que sejam respeitadas e fortalecidas as suas organizações e instâncias representativas, para o diálogo democrático, franco e sincero com o Estado.
  3. Implementação efetiva do Subsistema de Saúde Indígena para superar o atual quadro de caos e abandono em que estão as comunidades indígenas. Só em 2013, foi registrado a morte de 920 crianças indígenas por doenças curáveis, situação que poderia ser evitada se houvesse de fato uma política de atendimento de qualidade. É fundamental para o desenho e implementação da política a participação plena e o controle social exercido rigorosamente pelos próprios povos e comunidades e suas instancias representativas, conforme estabelece a Convenção 169, a fim de evitar a reprodução de práticas de aliciamento, divisionismo, corrupção, apadrinhamentos políticos, precariedade ou ausência de atendimento humanizado. É igualmente muito importante que o subsistema garanta o respeito e valorização dos conhecimentos e saberes da medicina tradicional indígena (Pajés, parteiras, plantas medicinais) e o reconhecimento da categoria profissional e remuneração justa dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN).
  1. Garantia de acesso de todos os indígenas à educação de qualidade, específica e diferenciada, de forma continuada e permanente, nas aldeias, na terra indígena ou próxima da mesma, conforme a necessidade de cada povo, com condições apropriadas de infra-estrutura, recursos humanos, equipamentos e materiais, respeitando o projeto político-pedagógico próprio, calendário e currículo diferenciado, conforme a tradição e cultura dos nossos povos e de acordo com a resolução 03 do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Que o MEC crie junto aos Estados escolas técnicas profissionalizantes, amplie o ensino médio e programas específicos de graduação para os povos indígenas, assegurando ainda o ensino científico integrado com os conhecimentos tradicionais para os estudantes indígenas, a realização de concurso público específico e diferenciado para os professores indígenas, a valorização, reconhecimento e remuneração justa da categoria de professores indígenas, o reconhecimento dos títulos dos estudantes indígenas formados no exterior, a participação dos povos e organizações indígenas na implementação dos territórios etnoeducacionais. Que seja garantido ainda a permanência dos estudantes indígenas nos cursos regulares de ensino superior, e que se avance do sistema de cotas, ainda limitado, a um programa realmente específico de acesso dos indígenas a esse ensino.

  1. Garantir no âmbito do Ministério da Cultura a participação de indígenas no Conselho Nacional de incentivo à cultura e a criação de uma instancia específica, com equipe técnica e orçamento próprio, para atender as demandas da diversidade e promoção das culturas indígenas.
  2. Compromisso com o fim da criminalização, o assassinato e a prisão arbitrária de lideranças indígenas que lutam pela defesa dos direitos territoriais de seus povos e comunidades. É preciso influenciar o poder judiciário e orientar a polícia federal para que respeitem as nossas lideranças enquanto lutadores por seus direitos e não os trate como quaisquer criminosos, agilizando, em contrário a punição dos mandantes e executores de crimes cometidos contra os povos e comunidades indígenas.
  3. Disponibilização, por parte do Ministério do Planejamento e Gestão Orçamentária dos recursos públicos necessários para a implementação efetiva destas políticas e ações voltadas aos nossos povos e comunidades, de tal forma que os planos e metas estabelecidas sejam alcançadas.

O compromisso dos governantes com a implementação desta agenda constituirá um marco de superação de todas as mazelas e atrocidades cometidas até hoje, depois de 514 anos da invasão européia, contra os nossos povos, tornando realidade o paradigma constitucional que colocou fim ao indigenismo integracionista, etnocêntrico, autoritário, paternalista, tutelar e assistencialista, para restituir a autonomia aos nossos povos, a condição de sujeitos políticos e de povos étnica e culturalmente diferenciados, em prol do fim do Estado colonial e de uma sociedade realmente democrática, justa e plural.

Reafirmamos finalmente a nossa determinação de fortalecer as nossas alianças, solidariedade e lutas conjuntas com outros segmentos e movimentos do campo cujos territórios também estão sendo visados pelos donos do capital:  quilombolas, pescadores artesanais, camponeses e comunidades tradicionais.

Brasília, 14 de setembro de 2014.

 

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB