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Nota pública sobre o novo modelo institucional proposto pelo governo para o atendimento à saúde dos povos indígenas

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), considerando a proposta de um “novo modelo institucional para atendimento de saúde às populações indígenas”, apresentado na segunda-feira, 4 de agosto, pelo ministro da Saúde Arthur Chioro e auxiliares, a lideranças da bancada indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista e dirigentes do movimento indígena, vem de público manifestar a sua indignação e repúdio a mais este ato de descaso do atual governo no tratamento dos direitos indígenas. Logo num contexto de ataques sistemáticos a esses direitos, agravados pela conivência e por este novo feito que ao invés de assegurar um futuro melhor torna mais imprevisíveis as políticas e práticas de atendimento específico e diferenciado aos povos indígenas, na área da saúde.

Os povos indígenas por mais de 10 anos sofreram pelo atrelamento do subsistema de saúde indígena a interesses político-partidários que impossibilitaram que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) se estruturasse devidamente para implementar com eficiência a atenção básica à saúde dos povos indígenas. Por isso se envolveram totalmente nas articulações e mobilizações políticas e legislativas que possibilitaram a criação da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), e inclusive com a indicação, através de suas organizações representativas, do atual Secretário, do senhor Antonio Alves.

Propor um novo modelo, por meio da criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI) sem sequer, depois de 4 anos, ter consolidado a Sesai e mostrado diferenças substanciais com relação ao atendimento oferecido pela Funasa, e menos ainda sem ter conversado com nenhum dos segmentos envolvidos na saúde indígena, principalmente os usuários, é de se lamentar e considerar que o Ministério da Saúde e o Ministério do Planejamento estão agindo de acordo com interesses não revelados, de má fé e falta de lealdade, principalmente por parte dos gestores que até o momento tiveram o respaldo do movimento indígena por meio de seus representantes, nas instâncias de controle social, que mesmo funcionando precariamente estão instituídos legalmente.

Com esta medida, o governo, além de frustrar as expectativas dos povos, organizações e lideranças indígenas em relação às condições que poderiam melhorar o atendimento à saúde indígena, que envolve a autonomia política, administrativa e financeira dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), reivindicada há tantos anos, demonstra a sua incapacidade de lidar, senão o seu preconceito, com relação a diversidade étnica e cultural dos povos indígenas, acreditando que um novo arranjo institucional testado em espaços urbanos e com perfil privatizante irá pôr fim ao atual quadro de descaso e atendimento precário em que está a saúde dos povos indígenas.

Ao invés de assumir a sua responsabilidade, o governo a transfere para o setor privado, possivelmente para se livrar das pressões e cobranças dos povos indígenas, intenção manifesta na explicita redução, quase que exclusão, do controle social no novo modelo proposto.

Se foi possível a criação de condições para a contratação de servidores efetivos, via concurso, para a Fundação Nacional do Índio (Funai), que cuida de um dos aspectos fundamentais da vida dos povos indígenas –a demarcação e proteção de seus territórios- por quê o governo não faz o mesmo para esta área sensível que é a saúde indígena e prefere jogar recursos públicos para novos arranjos e ações cujos resultados não podem ser garantidos. Por exemplo, quem garante que o INSI facilitará a aceitação e legitimação dos profissionais pelas comunidades, a contratação de membros dessas comunidades e a superação da dificuldade de acesso às aldeias em razão da extensão territorial? Para que mesmo vai servir a Sesai nesse contexto?

Por essas e muitas outras razões, a Apib reivindica do governo, dos Ministérios da Saúde e do Planejamento, que desista desta nova tentativa de regredir com as conquistas dos povos indígenas, garantindo contrariamente a implementação efetiva da Sesai.

Aos povos e organizações indígenas, a Apib chama para ficarem atentos e mobilizados contra quaisquer iniciativas que tentem reverter ou desconstruir direitos conquistados com muita luta, como a própria Sesai, pensada para superar as péssimas condições em que a Funasa deixou o atendimento básico à saúde indígena, mas que não se efetivou por falta de compromissos e vontade política. O governo não poderia ter feito esta absurda proposta que contraria todo o espírito do Sistema Único de Saúde (SUS) e do subsistema de saúde indígena, afrontando ainda “mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, estabelecidos pelo Decreto No. 8.243, de 23 de maio de 2014, da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS).

A Apib relembra por fim que está em andamento o processo de realização da I Conferência Nacional de Política Indigenista, na qual estará em discussão o tema “A relação do Estado Brasileiro com os Povos Indígenas sob o paradigma da Constituição de 1988”. Certamente essa será a ocasião para o movimento indígena reiterar a sua autonomia e a superação da relação colonialista que caracterizou a postura histórica desse Estado, bem como a reafirmação “das garantias reconhecidas aos povos indígenas no país” e a proposição de “diretrizes para a construção e consolidação da política indigenista nacional”, tal qual reza o Decreto No. 141 de convocação da Conferência. Nessa perspectiva a política da saúde indígena não pode tomar caminhos diferentes, a não ser para garantir o atendimento realmente de qualidade, específico e diferenciado aos povos indígenas.

Brasília – DF, 14 de agosto de 2014.

As entranhas do poder exercido pela Sesai

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(Foto: Arquivo Cimi)

Paulo Daniel Moraes, Cimi,

de Manaus (AM)

O chamado Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi-SUS) desde os seus primeiros passos no início da década de noventa sempre esteve imerso em um ambiente institucional burocrático, tecnicista e autoritário. O próprio Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de conter em seus princípios constitucionais as respeitáveis diretrizes teóricas da democratização e da descentralização das decisões, cada vez mais padece dos mesmos males, a ponto da maioria dos conselhos e das próprias conferências de saúde serem hoje meras figuras decorativas nas mãos dos gestores políticos da saúde pública no país.

Esta é uma cultura institucional que guarda resquícios do período ditatorial, até mesmo porque boa parte dos políticos que controlam estes órgãos e indicam os seus gestores são também frutos desta raiz autoritária que infelizmente até hoje comanda boa parte do aparelho político brasileiro. Os gargalos para o efetivo controle social e gestão participativa na saúde não passam de bonitas palavras no atual governo, onde imperam as práticas da cooptação e do clientelismo, e os critérios de preenchimento dos cargos são cada vez mais baseados no casuísmo, carreirismo e no oportunismo de seus postulantes.

A realidade do controle social durante os quatro anos de gestão do secretário Antônio Alves à frente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) reflete perfeitamente esta dura realidade. As crises repetidas motivadas pela indicação dos chamados ‘chefes de distritos’ revelam uma luta política de interesses mesquinhos e oportunistas. Uma carta pública da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), já no ano de 2011, alertava que “não basta que as pessoas ou instituições que assumam a gestão da saúde indígena tenham experiência técnica e administrativa comprovadas, mas é preciso que também tenham experiência em saúde indígena ou no âmbito da política indigenista, além, é claro, de preencherem os critérios de idoneidade definidos pela legislação e pelo governo federal”.

A interlocução da Sesai do Antônio Alves com o movimento indígena tem se dado principalmente, e, às vezes, quase exclusivamente, no âmbito do Fórum dos Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi). Este Fórum foi criado pelo atual ministro da Saúde Alexandre Padilha no tempo em que era diretor do Departamento de Saúde Indígena (Desai) na famigerada Funasa. Desde a sua criação, o Fórum passou gradualmente a substituir a interlocução dos conselhos distritais de saúde, que em muitos distritos foram transformados em órgãos fantasmas, ou passaram a se reunir em intervalos cada vez mais longos e sem a devida preparação que pudesse garantir uma mínima representatividade. O objetivo dos gestores na época era a manipulação grosseira e o uso político, que se tornaram as marcas registradas da Funasa e acabaram levando à sua remoção da gestão da saúde indígena.

Durante os longos e sofridos anos da atual gestão do Antônio Alves na Sesai, em que o orçamento da saúde indígena atingiu patamares bastante elevados, os recursos para as atividades do Fórum tem sido abundantes, tanto para as suas reuniões como para os encontros ampliados onde participa uma ampla rede de assistentes indígenas devidamente remunerados para este trabalho. Estes presidentes e assistentes são constantemente motivados e capacitados para fazer a defesa da atuação da Sesai a qualquer preço. Aqueles que se rebelam ou questionam ativamente esta situação passam a ter suas passagens negadas para as reuniões, e precisam enfrentar uma hostilidade aberta por parte do secretário, dos chefes dos distritos, e dos demais integrantes do grupo que hoje controla com mão de ferro a saúde indígena no país.

Enquanto isto, somos obrigados a assistir a situação de verdadeira penúria e abandono em que vive a maioria dos Conselhos Distritais e Locais de Saúde, obrigados a adiar seguidamente suas reuniões, ou realizá-las de forma improvisada e sem a mínima legitimidade conferida por uma representação qualificada. As etapas locais e distritais da quinta Conferência Nacional de Saúde Indígena estão sendo submetidas aos mesmos critérios, e muitas foram realizadas com apenas um dia de duração, quase sem preparação ou aviso prévio às comunidades, e com participação muito limitada de representantes das organizações indígenas, parceiros do movimento indígena, e das comunidades mais distantes ou de difícil acesso.

Uma situação semelhante a esta aconteceu por ocasião da quarta Conferência Nacional de Saúde Indígena patrocinada pela Funasa em 2006, o que levou as delegações indígenas das regiões Norte, Centro Oeste, Maranhão e Rio Grande do Sul, entre outras, a encaminharem documento ao Ministério Público Federal solicitando o cancelamento das decisões tomadas, e denunciando os graves erros cometidos no andamento da Conferência, como “a utilização de não índios convidados para manipulação da plenária indígena e a condução de reuniões paralelas não oficiais com o objetivo de influenciar delegações a favor da Funasa”.

Esperamos que a reprodução de atitudes semelhantes por parte da atual gestão da Sesai não venha a causar ainda maiores prejuízos à precária saúde das comunidades indígenas, e que possa servir como aprendizado para as organizações e lideranças indígenas em seu difícil embate contra aqueles que teimam em repetir modelos colonialistas na condução da política indigenista do Brasil.