Os povos e organizações indígenas estão marcando a semana que sucede o Dia do Índio (19/4) com mobilizações e eventos em defesa da demarcação das Terras Indígenas (TIs) e contra a série de propostas que pretendem restringir os direitos dessas populações.
No dia 24/4, quinta, às 9 h, será realizada uma sessão conjunta das comissões de Direitos Humanos da Câmara e do Senado sobre conflitos agrários, questões e direitos indígenas. O evento acontece no Plenário 9, no Anexo II da Câmara.
No evento, lideranças e organizações indígenas pretendem denunciar a paralisação dos processos demarcatórios em todo País, projetos do Legislativo e medidas do Executivo contrários aos direitos indígenas, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 (que transfere para o Congresso a atribuição de aprovar as demarcações), o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, a Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU) e a minuta de portaria do Ministério da Justiça (MJ), que pretende criar uma série de obstáculos burocráticos à demarcação de TIs. Organizações indígenas e indigenistas divulgaram recentemente um parecer jurídico que contesta a minuta (saiba mais).
O relator da PEC 215, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), e o secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, foram convidados a participar da audiência.
Também no dia 24, às 17h, em frente ao MASP, na Avenida Paulista, em São Paulo, acontece o Grande Ato de Resistência Guarani, que vai cobrar do MJ a demarcação das TIs Tendendé Porã e Jaraguá, na Grande São Paulo. A manifestação também vai denunciar a paralisação dos processos de demarcação em todo País. Na última quinta, já havia sido lançada, no Pateo do Collegio Anchieta, no centro de São Paulo, a campanha Resistência Guarani SP, pela demarcação das duas áreas (saiba mais).
Na manhã de hoje, a Via Campesina, movimento internacional que reúne organizações camponesas, de mulheres e indígenas, protocolou no MJ, em Brasília, uma moção de repúdio à minuta de portaria.
A audiência e as manifestações fazem parte da Mobilização Nacional Indígena, convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e apoiada pelo Instituto Socioambiental (ISA), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e Greenpeace, entre outras organizações.
As manifestações da Semana dos Povos Indígenas acontecem no momento em que o cacique Babau Tupinambá, líder indígena do sul da Bahia, foi impedido de viajar até o Vaticano. A Justiça de Una (BA) decretou a prisão preventiva dele, segundo reportagem do Cimi, pelo fato do cacique não ter sido encontrado para depor em inquérito que investiga a morte de um agricultor. Babau nega que não tenha sido encontrado. Ele havia recebido o passaporte no dia anterior. O documento foi solicitado pela Polícia Federal sob a justificativa haveriam outros três mandados de prisão contra a liderança – só que eles foram arquivados em 2010. Segundo uma fonte da PF ouvida pelo Cimi, a prisão foi decretada para impedir Babau de viajar.
No Vaticano, o cacique faria denúncias sobre a situação dos Tupinambá, que, há anos, demandam o reconhecimento de suas terras sem sucesso e são vítimas de violências e violações dos direitos humanos. Babau também falaria sobre a paralisação das demarcações de TIs no Brasil e as propostas que pretendem restringir os direitos indígenas.
Ontem (22/4), no dia em que foram lembrados os 514 anos da invasão portuguesa, um grupo de artistas lançou a campanha Tamuaté-aki, para cobrar de políticos e autoridades mais respeito aos direitos adquiridos pelos povos indígenas. O filme de lançamento da campanha tem a participação de artistas como Dira Paes, Letícia Sabatella, Marcos Palmeira, Tony Garrido e Wagner Moura. A campanha colocou no ar uma petição que tem a intenção de pedir a todos os parlamentares federais que demonstrem sua oposição a qualquer proposta que vise restringir os direitos desses povos. A campanha é organizada pelo Uma Gota no Oceano em apoio à Mobilização Nacional Indígena (saiba mais).
Para você, o Brasil foi descoberto ou invadido?
Como será que um indígena responderia esta pergunta?
Nós acreditamos que todo fato merece ser analisado por diferentes pontos de vista e que ao cruzar olhares possibilitamos a construção de uma sociedade mais consciente, inteligente e responsável. Esta é a inspiração para nossa mobilização em apoio aos povos indígenas no Brasil na defesa de seus direitos.
Entendemos que os mais de 305 povos indígenas brasileiros, caracterizam um patrimônio da diversidade sociocultural do Brasil que se reflete nos seus conhecimentos e modos de vida, em 274 línguas e uma imensa variedade de expressões artísticas e rituais.
A demarcação dos territórios indígenas, hoje paralisada, é condição básica de sobrevivência para esses povos. Sabemos que a maioria das Terras Indígenas no Brasil sofre invasões, impacto de obras e, freqüentemente, os índios colhem resultados perversos do que acontece mesmo fora de suas terras, nas regiões que as cercam: poluição de rios por agrotóxicos, desmatamentos etc. Apesar disso, em algumas regiões do Brasil, quase tudo o que sobrou da cobertura vegetal nativa está no interior das terras indígenas e das unidades de conservação. Acreditamos que a diversidade e a pluralidade da sociedade brasileira são fundamentais para construirmos outro futuro para a humanidade e o planeta.
Hoje estamos lançando nossa campanha e contamos com você para levar esta mensagem adiante.
Atenciosamente,
Equipe dos Tamuaté-aki
Alexia Dechamps, Ana Lima, Angelo Antonio, Cacau Protázio, Carla Daniel, Charles Gavin, Claudia Ohana, Dira Paes, Fernando Alves Pinto, Giulia Gam, Guilhermina Guinle, Jorge Pontual, Letícia Persiles, Letícia Sabatella, Marcelo Bonfá, Marcos Palmeira, Maria Paula Fidalgo, Marina Rigueira, Pedro Scooby, Thaila Ayala, Tony Garrido, Wagner Moura, Marcos, Minna Antonelli e Isadora Garrido
Alegando falta de documentação pré-constituída, o desembargador Jefferson Alves de Assis, do Tribunal de Justiça da Bahia, negou o habeas corpus impetrado pela defesa do cacique Babau Tupinambá (foto) contra mandado de prisão expedido na última quinta-feira, 17, pela Justiça Estadual de Una, município baiano. Com isso, o Estado segue impedindo a ida da liderança ao Vaticano para atividade com o papa Francisco. A defesa do cacique irá recorrer da decisão.
O mandado de prisão da Justiça de Una foi decretado menos de 24 horas depois da liderança ter recebido o passaporte para a ida ao estrangeiro. Conforme apuração preliminar, o mandado tem como motivação o fato do cacique não ter sido encontrado para depor em inquérito policial que apura a morte de um agricultor. Conforme afirma o Tupinambá, sempre que a Justiça o procurou o fez por intermédio da Funai e o achou. “Até o Exército, no último mês, sabia onde eu estava. Eu não me escondo. É muito estranho tudo isso”, diz.
O mandado de prisão da Justiça de Una não apareceu no sistema judiciário e aconteceu também depois de emitida a passagem de Babau para a Itália. Os advogados da liderança tiveram trabalho para ter acesso a decisão, que estava no prelo e aguardava um momento oportuno para ser decretada. Tanto que a notícia do mandado foi confirmada por informações apuradas junto a fontes da Polícia Federal. A Delegacia de Polícia Civil de Una pediu apoio aos federais para a prisão de Babau. A decisão, afirma esta fonte, veio para impedir a ida de Babau ao Vaticano.
No mesmo dia em que a Justiça de Una determinou a prisão do cacique Babau, a Polícia Federal, por sua vez, solicitou o passaporte da liderança, emitido menos de 24 horas antes pela Delegacia de Imigração, alegando a pendência de três mandados de prisão na Justiça Federal. Porém, tais mandados estavam arquivados desde 2010. O Ministério da Justiça informou aos advogados da liderança que está apurando o caso e que não deseja impedir o cacique de viajar. Babau comentou a coincidência:
“O governo não quer que eu denuncie o que vem acontecendo com os povos indígenas no Brasil. A Polícia Federal não sabe que os três mandados foram arquivados e nem processo existe? Claro que sabe! O governo sabe disso!”, protesta a liderança indígena que foi convidado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a ir ao Vaticano. Babau levará ao papa documentos com denúncias e presentes da aldeia Serra do Padeiro.
Já os três mandados de prisão escavados nos arquivos pela Polícia Federal são referentes ao período entre 2008 e 2010, quando cacique Babau Tupinambá foi acusado de formação de quadrilha e outros crimes em decorrência da resistência a sucessivas reintegrações de posse de áreas declaradas como tradicionais dos Tupinambá pelo Estado.
Há exatos 514 anos as terras que hoje compõe o Brasil foram invadidas. O povo Tupinambá foi uma das primeiras nações originárias a ter contato com os colonizadores, que passaram a se dizer donos do território e senhores da gente que nele vivia. Pouco mais de cinco séculos se passaram, registrando um dos mais sangrentos massacres da história da humanidade. Os Tupinambá chegaram a ser declarados pelo Estado como extintos e chamados de caboclos. Se outrora foram levados pelas naus como atração do “novo mundo” para os europeus, hoje são impedidos de sair do país para se autoafirmarem.
Não é a primeira vez que o governo e o Estado tentam impedir a ida de uma liderança indígena ao estrangeiro.
Caso Juruna
Tanto no recente período democrático, quanto no regime militar os indígenas sofreram sanções para sair do país com o intuito de cumprir agendas políticas autônomas. Antes desta tentativa de impedimento do cacique Babau Tupinambá, lideranças Kayapó, em 1988, tiveram dificuldades de conseguir os passaportes para um simpósio nos Estados Unidos e no regresso ao Brasil foram enquadrados pela Lei dos Estrangeiros, sendo ameaçados de prisão e expulsão do país.
Agora o exemplo de maior repercussão e com as consequências mais duras foi o chamado Caso Juruna, quando, em 1980, a liderança Xavante Butsé Dzuruna, o Mário Juruna, então deputado federal, precisou recorrer ao Tribunal Federal de Recursos (TFR) para participar do IV Tribunal Russell sobre os Direitos dos Índios das Américas, na Holanda.
O presidente da Funai à época, Nobre da Veiga, evocou a tutela para não liberar o passaporte a Mário Juruna. Veiga alegava ser tutor da liderança e que não sabia se fora do país alguém se responsabilizaria por ele. Dizia que precisava saber o que Juruna iria fazer. O indígena registrou com seu inseparável gravador, como era seu costume, a verdadeira motivação do presidente da Funai. Leia trecho da conversa:
Nobre da Veiga – Eu só espero que você se lembre disto, que você é um homem brasileiro, e que o governo brasileiro lhe defende sob todos os aspectos e que você deve fazer lá um trabalho para o Brasil e não contra o Brasil; o que você tem é que defender o Brasil.
Mário Juruna – Eu posso defender o Brasil, posso defender a terra, mas não defendo o povo.
Nobre da Veiga – Então você não é brasileiro, não quer defender o Brasil, vá para a Bolívia.
Mário Juruna – Por quê? Então eu tenho que defender os pistoleiros, aquelas pessoas que já mataram índios?
Nobre da Veiga – Um momento, Mário. Você está sendo contrário a um governo que está lhe defendendo (…). Você não pode fazer isso lá fora, caso contrário, você vai ver o que vai acontecer a você quando voltar. Estou te aconselhando como tutor de você que sou.
O TFR decidiu pela liberação do passaporte e Juruna embarcou rumo ao IV Tribunal Russell. Sagaz e experiente nas artimanhas do governo militar e do parlamento, Juruna dizia que branco não tinha palavra e mentia, por isso decidiu gravar reuniões com políticos, conversas com ministros e demais integrantes do governo. A postura contrapunha o controle militar com a autodeterminação dos povos. Com o passaporte em mãos, Juruna indicava a emergência de uma política indígena autônoma.
Se a tutela não garantiu o controle sobre o ir-e-vir de Juruna, os militares definiram então que à Funai cabia o direito de estabelecer critérios de quem poderia ser considerado ou não “índio”. Publicaram um documento intitulado Indicadores de Indianidade. Critérios como mentalidade primitiva, mancha mongólica ou sacral e medidas antropométricas eram alguns dos indicadores. A intenção era “demitir da condição de índio” lideranças que contestavam o indigenismo estatal. Fato bastante denunciado e combatido, fazendo com que os militares abandonassem a esdrúxula medida.
“Mesmo não se tratando de tutela, os mandados de prisão arquivados ou resultantes de mera perseguição política que surgem dias antes da viagem de Babau Tupinambá, com o objetivo de sustar seu passaporte e impedir a viagem, indicam apenas a mudança do instrumental utilizado pelo governo para controlar o ir-e-vir de lideranças indígenas. O autoritarismo e a indigência jurídica seguem os mesmos”, afirma Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Cimi e advogado do cacique Babau.
Cerca de 50 indígenas da etnia guarani das aldeias localizadas na Grande São Paulo entraram hoje por volta das 15:30h no espaço interno do Museu Anchieta, localizado no Pateo do Collegio.
Cerca de 50 indígenas da etnia guarani das aldeias localizadas na Grande São Paulo entraram hoje por volta das 15:30h no espaço interno do Museu Anchieta, localizado no Pateo do Collegio.
Depois de surpreenderem os presentes dançando na área interna do Pateo, afirmaram que vão dormir no local, e não vão sair até o fim de um evento de lançamento da campanha pela demarcação das suas terras, denominada Resistência Guarani SP, que está programada para amanhã, dia 17/04, no Largo do Pateo, a partir das 16h.
Interromper temporariamente as atividades do Museu, que celebra o local de fundação da cidade e início da colonização, foi a forma encontrada pelos habitantes originários de São Paulo para cobrar do Ministério da Justiça a emissão das Portarias Declaratórias que garantem a demarcação das Terras Indígenas Tenondé Porã e Jaraguá, já reconhecidas pela Funai.
Os indígenas também protestam contra decisão judicial que determina o despejo de cerca de 700 guaranis da aldeia Tekoa Pyau, localizada no Pico do Jaraguá, e que faz parte da área reivindicada como de sua posse tradicional.
Para divulgar a ação, os Guarani publicaram um vídeo-manifesto, falado em sua própria língua e disponível no site da Campanha, onde também há outros vídeos, mapas, textos e fotos, que informam detalhes das reivindicações feitas pelas comunidades.
Uma petição online pedindo ao Ministro Cardozo a assinatura do documento que garante a demarcação das terras também já circula na internet com apoio de vários movimentos sociais e organizações de direitos humanos, e já conta com mais de duas mil assinaturas.
Além do evento público de Lançamento da Campanha, que será realizado amanhã, dia 17, às 16h, em frente ao local, os Guarani também convocam a todos para um grande ato, que será realizado na Av. Paulista, no dia 24/04, com a mesma pauta.
As lideranças indígenas oferecem uma coletiva de imprensa amanhã, dia 17/04, às 10h, no próprio Pateo do Collegio.
Hoje nós indígenas guarani de todas as aldeias de São Paulo ocupamos pacificamente o Pateo do Collegio, que é o local onde os brancos se fixaram pela primeira vez, e começaram a tomar posse das terras que eram do nosso povo.
Fizemos isso pensando que em poucos dias, chega a data que chamam de “Dia do Índio”.
Nesse dia, porém, nos acostumamos a ser enganados, da mesma forma que nos enganaram quando chegaram dizendo que eram nossos amigos.
Em todo lugar onde vivem nossos parentes, os Governos promovem festas no 19 de abril, e tentam fazer a gente comemorar, quando não há motivo pra isso. Até bebida vários Governos compram pros nossos parentes, pra fazê-los esquecer.
Mas cansamos de ser enganados.
Ocupando pacificamente o Pateo do Collegio, esse lugar simbólico, não estamos nos vingando, nem estamos enganando vocês, como já fizeram conosco.
Queremos apenas surpreendê-los para anunciar que precisamos da demarcação das nossas terras. Dia do Índio pra nós, será o dia que o Ministro José Eduardo Cardozo assinar o documento que garante a demarcação das nossas terras tradicionais.
Nossas terras não são mais aqui no Centro, não são no Pateo do Collegio, pois esse lugar já foi tomado de nós há muito tempo, e não vamos nunca pedir de volta.
Elas são na margem da metrópole, onde ainda não foi destruído e sobrou um pouco das matas onde sempre habitamos.
Vivemos nas Terras Indígenas Jaraguá e Tenondé Porã, uma no Pico do Jaraguá e outra no Extremo Sul da Grande São Paulo.
Há muito tempo é lá que estamos para tentar viver em paz a nossa cultura, e muitos de vocês não sabem disso, mesmo estando tão perto de nós.
Amanhã, estaremos aqui em frente ao Pátio do Colégio, onde convidamos o Ministro Cardozo, para mostrar a ele e a todos vocês nossas danças e a força dos nossos cantos, e explicar porque estamos lutando.
Não vamos cansar, até atingir nosso objetivo. Não temos outra escolha.
Com esse movimento anunciamos que a partir de amanhã iniciamos uma campanha para lutar pela demarcação dessas terras, com lançamento público aqui em frente ao Pateo do Collégio, dia 17/04, a partir das 16h.
Venham nos apoiar e mostrar pro Ministro Cardozo que ele precisa garantir nossos direitos.
No dia 24 de abril, também iremos às ruas, saindo da Av. Paulista, do Vão Livre do MASP. Queremos que seja um ato para comemorar a assinatura das demarcações das nossas terras, mas se isso não acontecer, será um ato para continuar lutando por elas.
Mais informações:
Demarcação das Terras Indígenas (TI) na Grande São Paulo: TI Jaraguá e TI Tenondé Porã
A população guarani que reside na Grande São Paulo distribui-se hoje em 6 aldeias, que fazem parte de duas Terras Indígenas (TI) atualmente em processo de regularização fundiária.
Duas delas, denominadas Aldeia Ytu e Aldeia Pyau, localizam-se no Pico do Jaraguá e compõem a Terra Indígena Jaraguá. Nelas residem cerca de 700 guarani. A TI Jaraguá foi reconhecida inicialmente na década de 1980, mas foi então regularizada com apenas 1,7 hectare, configurando-se como a menor terra indígena do país. A aldeia Pyau fica fora dessa área e atualmente há uma decisão judicial vigente, que determina o despejo dos Guarani que ali habitam.
A falta absoluta de espaço é o detonante de inúmeros problemas sociais e culturais. A situação dos guarani do Jaraguá foi extremamente agravada pela construção da Rodovia dos Bandeirantes, inaugurada em 1978 sem qualquer consideração à presença indígena. A estrada suprimiu parte de suas áreas de ocupação tradicional.
Em 2002, por fruto da luta das lideranças indígenas, iniciou-se um processo para correção dos limites do território, para adequá-la aos padrões da Constituição de 1988. Finalmente, no dia 30 de abril de 2013, a Fundação Nacional do Índio (Funai) aprovou e publicou no Diário Oficial da União (Portaria FUNAI/PRES No 544) os resultados dos estudos técnicos que reconhecem cerca de 532 hectares como limites constitucionais da Terra Indígena Jaraguá, incluindo as duas aldeias atualmente ocupadas, e as áreas necessárias para a reprodução física e cultural do grupo.
De acordo com o Decreto Presidencial nº 1775, que regulamenta o processo de demarcação de Terras Indígenas no país, abre-se, a partir da publicação desses estudos, período de 90 dias para que os interessados apresentem contestações administrativas. Após esse período, já encerrado, cabe ao Ministro da Justiça publicar uma portaria declaratória que permite iniciar o processo de indenização dos ocupantes não indígenas para devolver as áreas ao usufruto exclusivo das comunidades indígenas. A assinatura dessa portaria é uma das reivindicações dos guarani.
As outras quatro aldeias localizam-se no extremo sul da metrópole, na beira da represa Billings, duas delas em Parelheiros (Aldeia Barragem e Aldeia Krukutu), uma próxima ao distrito de Marsilac (Tekoa Kalipety) e a última em São Bernardo do Campo (Aldeia Guyrapaju). As duas primeiras haviam sido reconhecidas também na década de 1980, com uma superfície de cerca de 26 hectares cada. Atualmente com uma população de cerca de 1.400 pessoas distribuídas entre as quatro aldeias, as áreas reconhecidas na década de 1980 tem uma densidade populacional crítica de 26 pessoas por hectare, o que também é causa da maioria dos problemas pelas quais enfrentam os Guarani.
Por isso, também após a reivindicação das lideranças, iniciou-se em 2002, um estudo para a correção desses limites, de acordo com os parâmetros constitucionais. Dez anos depois, em 19 de abril de 2012, a Funai também aprovou e publicou no Diário Oficial da União (Portaria FUNAI/PRES No 123) os resultados dos estudos técnicos que reconhecem cerca de 15.969 hectares como compondo os limites constitucionais da Terra Indígena Tenondé Porã, que abrange essas três aldeias da região sul. O processo agora também está nas mãos do Ministro da Justiça, de quem os Guarani reivindicam a publicação imediata da Portaria Declaratória da TI Tenondé Porã.
Processo de Reintegração de Posse contra os Guarani da aldeia Pyau, da Terra Indígena Jaraguá
Desde 2002, os Guarani disputam na justiça a posse da área da aldeia Pyau, onde habita a maioria dos moradores da TI Jaraguá. Dois particulares reclamam reintegração de posse contra os índios desde esse período, alegando terem títulos de propriedade sobre a área. Não há registro, entretanto, de que esses particulares tenham algum dia habitado o local, que os Guarani consideram de seu uso tradicional.
Embora a FUNAI tenha reconhecido a área como parte da Terra Indígena Jaraguá, em 2013, pesou contra os índios uma decisão de reintegração de posse, emitida na primeira instância da Justiça Federal de São Paulo. A decisão encontra-se suspensa, porém, até o julgamento das apelações apresentadas pela União e pelo Ministério Público Federal, e é passível de modificação pelo Tribunal Regional Federal. Segundo o Artigo 231 da Constituição Federal, são considerados nulos e extintos todos os atos administrativos que envolvem a posse de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas. Deste modo, emissão da Portaria Declaratória da Terra Indígena Jaraguá pelo Ministro da Justiça tornaria nulos os alegados títulos dos particulares que disputam em juízo a área ocupada pelos Guarani.
Durante a Mobilização Nacional Indígena, em outubro de 2013, os Guarani Trancaram rodovias em protesto pela demarcação de suas terras tradicionais
No próximo dia 17, os mais dois mil índios guarani que vivem na cidade de São Paulo darão mais um passo na luta pelo reconhecimento de suas terras tradicionais. Os Guarani lançam nessa quinta-feira, às 16h, em frente ao Pátio do Colégio, a Campanha Resistência Guarani São Paulo.
Com o apoio de movimentos sociais, coletivos, ONGs e apoiadores da causa indígena, essa mobilização é capitaneada pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) – organização política autônoma que congrega as aldeias do povo guarani localizadas no Sul e Sudeste do Brasil – e visa pressionar o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a declarar as terras indígenas Jaraguá, na Zona Norte, e Tenondé Porã, no extremo sul da cidade. Já reconhecidas pela Funai, essas terras somam juntas cerca de 16.500 ha.
Sem o término do processo de demarcação, os índios vivem confinados em áreas minúsculas e ainda sofrem ameaças de despejo – como é o caso da aldeia Tekoa Pyau, no Pico do Jaraguá, onde foi decidida em primeira instância uma reintegração de posse contra os índios,
Além da mobilização nas ruas, a CGY lançou também uma plataforma multimídia com vídeos, mapas, textos e fotos onde é possível conhecer detalhes das reivindicações feitas pelas comunidades: http://campanhaguaranisp.yvyrupa.org.br
Na internet, também é possível manifestar seu apoio à causa assinando a petição que exige do Ministério da Justiça a demarcação das Terras Indígenas Guarani na Grande São Paulo: http://goo.gl/3NQwPh
Outro ato foi chamado para o dia 24/4, com a concentração no Vão Livre do MASP, às 17h, e contará com a a presença de várias comitivas de guaranis das diferentes aldeias deste povo na região. Acompanhe: https://www.facebook.com/events/294085780746244/
Serviço:
CAMPANHA PELA DEMARCAÇÃO DAS TERRAS GUARANI EM SÃO PAULO
LANÇAMENTO
Dia 17 de abril, quinta feira, às 16h em frente ao Pátio do Colégio.
Um parecer analisando a Minuta de Proposta do Ministério da Justiça para promover alterações no procedimento de demarcação de terras indígenas foi tornado público, nesta última terça-feira, 8, pelas bancadas indígena e indigenista da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI).
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convoca toda a sociedade envolvente aos povos indígenas para assinar e divulgar o parecer, contraposição à minuta e formulado durante quatro meses de diálogo entre as organizações indígenas e indigenistas.
Para assiná-lo é necessário enviar uma mensagem de adesão ao endereço eletrônico apib.nacional@gmail.com. As assinaturas serão anexadas ao parecer e enviadas às autoridades.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, com a minuta, tenta reavivar, 50 anos depois, mecanismos da ditadura militar para a demarcação de terras indígenas. Isso significa legalizar o que o governo federal não vem cumprindo: a regularização dos territórios tradicionais.
O documento, com 16 páginas, tem início com a contextualização histórica da consolidação da legislação indigenista seguindo até a principal jurisprudência a respeito dos procedimentos de demarcação de terras indígenas. Traz à tona a como a proposta do Ministério da Justiça contraria decisões recentes, inclusive tomadas pela Corte Suprema do país, o STF, caso do julgamento da Petição 3388 sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, entre outros.
Em seguida, são comentados os equívocos dos principais artigos apresentados na minuta, que passaria a permitir a interferência de grupos contrários à demarcação desde os primeiros momentos do procedimento de identificação e delimitação das terras indígenas, inviabilizando até mesmo o trabalho de campo dos profissionais e estudiosos.
Ao final do documento, as organizações indígenas e indigenistas que subscrevem o parecer sintetizam nove principais conclusões, sendo a última delas um recado claro para o governo federal:
“Uma eventual publicação da Portaria em questão reforçará compreensão, por parte dos povos indígenas, organizações de apoio aos povos e da sociedade em geral de que o Governo Dilma é claramente anti-indígena, aliado de primeira hora dos ruralistas, alinhado aos interesses do poder econômico nacional e transnacional, notoriamente do agronegócio, e obstinado por um modelo de desenvolvimento neocolonizador, usurpador de territórios, etnocida e ecocida”.
Ministro Cardozo, durante reunião da CNPI, com o parecer contra a minuta do Ministério da Justiça. Foto: Carolina Fasolo/Cimi
As principais organizações indígenas e indigenistas do país tornaram público nesta terça-feira, 08, durante sessão da 9º reunião extraordinária da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), em Brasília (DF), um parecer jurídico a respeito de Minuta de Portaria para a “regulamentação” do Decreto nº1775/96, apresentada pelo Ministério da Justiça, José Eduardo Cardozo.
No final de novembro do ano passado, a minuta com as intenções do governo para o futuro do procedimento demarcatório foi encaminhado para a Bancada Indígena da CNPI e revoltou as organizações e povos indígenas. “Contrariamente às alegações do governo, a dita portaria eterniza a não demarcação de terras indígenas, fragiliza a Funai, e desenha um quadro assustador de acirramento de conflitos”, disse em nota a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) à época.
Diante da minuta, 1.700 indígenas realizaram uma manifestação, no dia 4 de dezembro, que culminou com a ocupação da parte externa do Palácio do Planalto. No conflito com seguranças, quatro indígenas acabaram feridos. Com a pressão, o ministro da Justiça recuou e sinalizou o engavetamento da minuta. Na manhã desta terça, porém, durante a abertura da reunião da CNPI, Cardozo a impôs à pauta sem encaminhar nada quanto às decisões do último encontro do plenário da comissão.
Além de divulgar uma carta (leia aqui) rechaçando a postura de Cardozo de transformar a pauta da CNPI em cabide de discussões de interesse exclusivo do governo, as organizações indígenas e indigenistas apresentaram, ainda na manhã desta terça, o parecer jurídico sobre a minuta do ministro da Justiça.
O parecer
O documento, com 16 páginas, tem início com a contextualização histórica da consolidação da legislação indigenista seguindo até a principal jurisprudência a respeito dos procedimentos de demarcação de terras indígenas. Traz à tona a como a proposta do Ministério da Justiça contraria decisões recentes, inclusive tomadas pela Corte Suprema do país, o STF, caso do julgamento da Petição 3388 sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, entre outros.
Em seguida, são comentados, à luz da legislação e da jurisprudência, os equívocos dos principais artigos apresentados na minuta, que passaria a permitir a interferência de grupos contrários à demarcação desde os primeiros momentos do procedimento de identificação e delimitação das terras indígenas, inviabilizando até mesmo o trabalho de campo dos profissionais e estudiosos.
Ao final do documento, as organizações indígenas e indigenistas que subscrevem o parecer sintetizam nove principais conclusões, sendo a última delas um recado claro para o governo federal:
“9. Uma eventual publicação da Portaria em questão reforçará compreensão, por parte dos povos indígenas, organizações de apoio aos povos e da sociedade em geral de que o Governo Dilma é claramente anti-indígena, aliado de primeira hora dos ruralistas, alinhado aos interesses do poder econômico nacional e transnacional, notoriamente do agronegócio, e obstinado por um modelo de desenvolvimento neocolonizador, usurpador de territórios, etnocida e ecocida.”
Ministro reage a parecer
As lideranças da bancada da CNPI entregaram o documento diretamente ao ministro da Justiça, juntamente com uma carta manifesto. Cardozo e seus assessores ficaram desconcertados e tentaram se justificar a todo custo. O ministro, porém, foi ao ataque e acusou os indígenas de se negarem ouvi-lo sobre a minuta. “Não podemos nunca nos furtar ao diálogo”, defendeu.
Sem ter lido o parecer, Cardozo pinçou de improviso alguns pontos isolados do documento e sustentou que já conseguia ver que os pontos de crítica que não teriam procedência. Desconsiderou que o parecer foi elaborado de forma minuciosa pelas organizações indígenas e indigenistas, depois de mais de quatro meses da divulgação da minuta.
“Por exemplo, no comentário ao Artigo 18, vocês estão criticando algo que já é prática da Funai. A presidente da Funai hoje já tem o poder de devolver os relatórios e prescrever diligências”. O que o ministro não diz, entretanto, é que se aprovada a minuta, o procedimento de demarcação de terras passaria a conter não apenas uma possibilidade de pedido reavaliação das conclusões do Grupo Técnico, de poder da Presidência da Funai, mas abre a possibilidade de que o processo volte a estaca zero três vezes: duas delas a critério da Funai e outra a critério do próprio Ministério da Justiça.
Sobre a crítica a respeito da abertura dos trabalhos de identificação de terras a diversos órgãos vinculados aos setores tradicionalmente anti-indígenas, ele tirou da manga de seu paletó uma resposta pronta: “A Lei de Acesso à Informação já garante que todos interessados possam participar do processo”. Entretanto, de acordo com a minuta do governo, não apenas esses setores não indígenas poderiam ter acesso aos processos, como poderiam indicar membros para o trabalho de campo, e, pior ainda, tais membros poderiam apresentar relatórios em separado, contrariando as conclusões do próprio coordenador do Grupo Técnico.
O desconforto do ministro Cardozo com a resposta das lideranças, porém, deve-se ao fato de que a posição do Ministério da Justiça a respeito das intenções da minuta não se sustenta diante da mínima análise jurídica, como demonstra claramente o parecer. Alegando construir um mecanismo que permitiria afastar a judicialização dos processos de demarcação de terras, o Ministério da Justiça, na verdade, propõe uma Portaria que dá instrumentos necessários para que os setores contrários às demarcações derrubem na Justiça as conclusões dos grupos técnicos, ao fomentar o dissenso no seio desses grupos.
PARECER SOBRE MINUTA DA PORTARIA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
I – PROPOSIÇÃO
A minuta de Portaria do Ministério da Justiça estabelece instruções para a execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas de que trata o Decreto nº 1.775/96.
Este parecer foi elaborado pelas organizações indígenas e indigenistas, subscritas ao final, e analisa os principais artigos da minuta. O texto completo da mesma encontra-se em anexo.
II – INTRODUÇÃO: OS DIREITOS DOS ÍNDIOS NOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
No Brasil, direito dos povos indígenas foi tema de intensos debates de juristas portugueses e brasileiros desde os primeiros tempos da Colônia, formando posicionamento consolidado nos nossos tribunais e na doutrina. Deste modo, qualquer proposição legislativa relacionada aos povos indígenas deve considerar, no princípio, a construção histórica que resultou nos arts. 231 e 232 da Constituição de 1988, bem como na legislação internacional acolhida pelo Brasil, sob pena de retrocessos e prejuízos as populações tradicionais. Vejamos a posição dos principais juristas da atualidade.
José Afonso da Silva e o indigenato:
“O INDIGENATO. Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica lusobrasileira que dita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1.º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 06 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas[1].”
O posicionamento consagrado, acima transcrito, foi seguido e externado de diversas formas por outros juristas renomados, como o ministro e ex-presidente do STF, Ayres Britto, ao falar da relação dos índios com suas terras. Vejamos:
“Para o índio, a terra não é um bem mercantil, passível de transação. Para os índios, a terra é um totem horizontal, é um espírito protetor, é um ente com o qual ele mantém uma relação umbilical[2].”
Do mesmo modo, o jurista Dalmo de Abreu Dallari, tornou-se referência importante nos tribunais e no meio acadêmico ao defender a nulidade dos títulos de particulares incidentes em terras indígenas:
“Ninguém pode tornar-se dono de uma terra ocupada por índios. Todas as terras ocupadas por indígenas pertencem à União, mas os índios tem direito à posse permanente dessas terras e a usar e consumir com exclusividade todas as riquezas que existem nelas. Quem tiver adquirido, a qualquer tempo, mediante compra, herança, doação ou algum outro título, uma terra ocupada por índios, na realidade não adquiriu coisa alguma, pois estas terras pertencem à União e não podem ser negociadas[3].”
Vejamos agora, as mais recentes decisões dos tribunais brasileiros sobre os processos de demarcação de terras indígenas:
a) Apelação nº 5006496-22.2012.404.7006 – TRF4 – Kaingang – Paraná
“O reconhecimento constitucional do direito dos povos indígenas e quilombolas às terras que tradicionalmente habitam, como parte de sua identidade e condição para a sobrevivência de sua cultura, foi assentado na Carta de 1988. No caso, estudo antropológico realizado na região deu conta de que depoimentos dos velhos kaingang, originários da terra indígena Boa Vista e de seus filhos que nasceram e ocuparam a área, de onde foram expulsos em 1962 e obrigados a viver em área vizinhas, para que esta terra fosse liberada para os não índios (evento 16 – PROADM4).” (Relator: Juiz Federal Sérgio Renato Tejada Garcia)
b) ACO 312 – STF – Índios Pataxó Hã Hã Hãe, estado da Bahia
“Nulidade de todos os títulos de propriedade cujas respectivas glebas estejam localizados dentro da área de reserva indígena denominada Caramuru-Catarina-Paraguaçu, conforme demarcação de 1938. Aquisição a NON DOMINO que acarreta a nulidade dos títulos de propriedade na referida área indígena, porquanto os bens transferidos são de propriedade da União (SUMULA 480 DO STF).” (Relator: Min. Eros Grau e Min. Cármen Lúcia)
c) Apelação nº 2007.01.00.051031-1 – TRF1 – Xavante, Mato Grosso
“25. Pode-se até admitir a asserção de que não havia mais índios naquelas terras por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, mas não se pode negar a verdade de que isto se deu em razão da referida expulsão, urdida maliciosamente pelos dirigentes da Agropecuária Suiá-Missu, na década de sessenta. Talvez não houvesse índios naquelas terras no ano de 1988, mas decerto que ainda havia a memória de seus antepassados, traduzida no “sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”, no dizer do Min. Carlos Britto, no julgamento do caso que ficou conhecido como “Raposa Serra do Sol” [PET n. 3.388/RR].” (Relator: Juiz Federal PEDRO FRANCISCO DA SILVA – convocado)
“I. Na ‘Constituição do Índio’ conforme denominação atribuída a Uadi Lammêgo Bulos, merece destaque a proeminência com que o constituinte de 88 tratou as questões indígenas, alçando-as a patamares tão relevantes que tracejou sua disciplina em inúmeros dispositivos constitucionais, como se vê dos arts. 20, XI; 22, XIV; 49, XVI; 109, XI; 129, V e 176, § 1º e, especialmente, no arremate definido no capítulo VIII do título que trata da ordem social, constituído pelos arts. 231 e 232 da Carta Política de 88, que consagrou o direito originário dos índios sobre as terras que ocupam tradicionalmente.” (Relator: Desembargador Federal JIRAIR ARAM MEGUERIAN)
e) Petição 3.388/RR – STF – Terra Indígena Raposa Serra do Sol
“11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. (…) 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as ‘imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar’ e ainda aquelas que se revelarem ‘necessárias à reprodução física e cultural’ de cada qual das comunidades étnico-indígenas, ‘segundo seus usos, costumes e tradições’ (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígene, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras ‘são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis’ (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA.”
“12. DIREITOS ORIGINÁRIOS. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente reconhecidos, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de originários, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como nulos e extintos (§ 6º do art. 231 da CF).” (Relator: Min. Carlos Ayres Britto)
O direito dos povos indígenas também está consubstanciado na Convenção 169 da OIT, cujo texto foi aprovado no ano de 1989, logo após a Constituição brasileira. Após aprovado pelo Congresso Nacional, o texto foi promulgado pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
III – PORTARIA – CONCEPÇÃO JURÍDICA
No decorrer dos últimos anos foram publicadas diversas Portarias relacionadas às questões indígenas, sempre com argumentos de regulamentar direitos ou estabelecer instruções. Destas, a Portaria 303 da AGU foi a que ganhou maior notoriedade, justamente porque fazia uma interpretação extremamente equivocada sobre as condicionantes do julgamento da Petição 3388/RR, antes mesmo da sua conclusão. Com o julgamento dos Embargos de Declaração, em outubro de 2013, a Portaria 303 perdeu seu sentido de existir, já que os Ministros do STF definiram que a decisão não tem efeito vinculante.
Diante do surgimento de tantas portarias, incluindo a minuta que aqui se discute, faz-se necessário entender o que é uma Portaria. Em linguagem simples e objetiva Hely Lopes Meirelles, personagem renomado no Direito Brasileiro, afirma que as “portarias são atos administrativos internos, pelos quais o chefe do Executivo (ou do Legislativo e do Judiciário, em funções administrativas) ou os chefes de órgãos, repartições ou serviços, expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou nomeiam servidores para funções e cargos secundários” (Direito administrativo brasileiro, São Paulo, Ed. Ver. Trib., 1966, pág 192).
Nas palavras do jurista Dalmo Dallari, “fica evidente que uma portaria não tem a força da lei nem da jurisprudência, não obrigando os que não forem subordinados da autoridade que faz sua edição[4]”. No entanto, a minuta do MJ disponibilizada, possibilita a intervenção de representantes de diferentes órgãos, legitimando interferências de quem não é seu subordinado e que, por óbvio, atuará em prol do órgão que o indicou.
De início, as novas regras já demonstram tendência de prejuízos ao direito originário dos índios, quando no art. 16, X, § 2º refere-se a proposta de delimitação da área indígena que deverá ser elaborada procurando minimizar eventuais conflitos ou impactos com áreas urbanas, tradicionais e agricultores familiares, interpretação política e constitucionalmente equivocada, inconcebível nos termos de uma Portaria.
Em Perícia Antropológica referente à ação de Demarcação que Leon Delix Milhomen e outros moviam contra a Fundação Nacional do Índio, Ladeira (1989, p.9) já arguia que:
(…) um processo de demarcação envolverá sempre um enfrentamento com a sociedade regional, qualquer que seja a proposta de área – já que a demarcação significa o impedimento de que a população regional possa ocupar e explorar aquela parcela do território indígena; ao mesmo tempo em que implica o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, que aquela área são terras indígenas, isto é, indisponíveis para outra função que não o usufruto dos índios.
Em resumo, importa ressaltar que:
O espírito do ato demarcatório seria o da proteção das terras indígenas, mas na prática, a definição da área a ser demarcada é sensível a pressões regionais;
O ato demarcatório coloca os índios como pólos extremos e diferenciais de forma de ocupação e exploração de um território, acentuando dessa maneira as tensões já existentes;
O processo de demarcação, ao tornar-se sensível aos interesses regionais, deixa de ser a expressão das exigências territoriais dos índios, inaugurando um processo em que várias propostas de área são apresentadas no sentido de tornar ‘viável’ a demarcação;
Por tornar “viável a demarcação” devemos entender o processo de concessão feita pela FUNAI às exigências regionais e a aplicação de uma política de amedrontamento em relação aos índios;
Ao exercitar-se nessa “política de mediação”, a FUNAI configura-se claramente como um órgão de intermediação entre interesses antagônicos e excludentes desfigurando-se, ao mesmo tempo, enquanto órgão protecionista dos interesses indígenas.
Em outras palavras, a FUNAI reduz os interesses dos índios a seus próprios interesses e possibilidades ao considerar apenas aqueles que exigem de sua parte o mínimo enfrentamento com a sociedade regional.
Se trocarmos “FUNAI” por “MJ” no texto acimacitado, fica claro que a proposta do Ministro José Eduardo Cardozo, portanto, do Governo Dilma Rousseff, repete inúmeras tentativas estatais de atropelar os direitos indígenas ESTABELECIDOS, para atender interesses regionais.
Neste aspecto, a Portaria é uma afronta à Constituição Federal.
IV – DISPOSITIVOS DA MINUTA DO MJ: AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Passemos, então, a analisar, minuciosamente, os diversos dispositivos da minuta disponibilizada pelo Ministério da Justiça:
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Conforme se observa, a Portaria estabelece instruções para a execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas de que trata o Decreto 1.775/96, o qual já trata dos procedimentos administrativos e demarcação de terras indígenas de que trata a Lei 6001/1973 e o art. 231 da Constituição. No decreto, já está inserido a competência do órgão federal de assistência ao índio. Ou seja, a nova Portaria cria regras dentro de regras, evidentemente desnecessárias.
CAPÍTULO II
DA ANÁLISE PRÉVIA DE ADMISSIBILIDADE
Art. 3º. Os requerimentos para identificação e delimitação de terras indígenas deverão ser formalizados por escrito e conter o máximo de informações possíveis sobre a área reivindicada e o povo indígena envolvido, observados os seguintes requisitos mínimos para seu processamento:
I – autoria determinada;
II – parâmetros geográficos mínimos, que permitam a localização da área reivindicada; e
III – na hipótese de a comunidade indígena não ser a requerente, identificação dos seus representantes e prova da sua concordância.
Desde antes do decreto nº 22/1991 baixado pelo então Presidente Collor de Mello, que os tais “requerimentos” são traduzidos em processos internos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Qualquer nova reivindicação, seja por estabelecimento de Grupo Técnico para reconhecimento de terra indígena ou por revisão de terra já delimitada, é documentada pela FUNAI com formalização de um processo interno. Atualmente, os requerimentos para identificação e delimitação de terras indígenas são realizados pelas comunidades e organizações indígenas consolidadas e com reconhecimento dos órgãos governamentais. Pode-se considerar aqui uma conquista da autonomia dos povos indígenas resultado da Constituição de 1988. Na minuta apresentada pelo MJ, aparece a possibilidade de qualquer interessado apresentar requerimento (art. 3º), o que, em primeiro lugar, desconsidera a organização social dos índios e seu protagonismo, conforme sua história, organização social e a compreensão das necessidades de cada grupo, bem como os processos internos já estabelecidos na Funai. Por outro lado, o dispositivo abre a possibilidade de quaisquer interessados, além das comunidades e/ou organizações indígenas (incluindo invasores, prefeituras, governos estaduais e outros interessados em impedir o reconhecido de uma terra indígena) formalizarem pedidos de identificação e delimitação de terras indígenas apresentando parâmetros geográficos e informações falsas, ao passo de legitimar a ocupação da área indígena ocupada por eles ilegalmente.
Quanto à prova de concordância da comunidade indígena interessada, basta lembrar os falsos documentos juntados no processo judicial relacionados aos índios Xavante de Marãwatsédé, registrados em cartório, onde um grupo de índios, aliciados (mediante pagamento em dinheiro) por fazendeiros invasores e com a anuência de autoridades locais e estaduais, pedia a permuta daquela terra com o Parque Estadual do Araguaia. O subterfúgio levou à suspensão da decisão colegiada do TRF1 pelo desembargador relator e somente foi superada após intensa mobilização dos índios, da atuação da Funai, do MPF e advogados e na instância superior.
Art. 6º. Com base no parecer técnico, a Presidência da Funai decidirá:
II – pelo arquivamento do procedimento administrativo, quando não houver elementos suficientes que justifiquem a constituição do grupo técnico de que trata o § 1º, do art. 2º, do Decreto 1.775, de 1996, em despacho motivado e publicado.
O inciso II combinado com o artigo 3º estabelece um procedimento inteiramente novo, uma análise prévia à constituição do grupo técnico. Contudo, segundo o Decreto 1.775/96, somente aquele grupo técnico estabelecido pela Funai pode avaliar os “elementos” complementares necessários ao reconhecimento de uma terra indígena a partir de um estudo antropológico realizado por profissional desta disciplina de qualificação reconhecida. Logo, o inciso II acima transcrito, cria dispositivo inexistente no Decreto 1.775/96, com potencial de suspender o procedimento de demarcação previsto no mesmo Decreto antes mesmo do dito procedimento ser iniciado.
CAPITULO III
DA CONSTITUIÇÃO DO GRUPO TÉCNICO E DO ACOMPANHAMENTO DOS TRABALHOS
Neste capítulo constam (art. 8º ao 12), seguramente, elementos que devem ser observados com atenção, pois cheios de subterfúgios e aparências de legalidade, porém com potencial prejuízos aos povos indígenas, às questões culturais do país e a preservação do meio ambiente, bem como ao patrimônio da União, dos brasileiros.
Lembre-se, que os deputados ruralistas em seus esforços para aprovar a PEC 215/00, utilizam, constantemente, em seus discursos, mensagem simpática de que o Congresso precisa participar, discutir as demarcações de terras indígenas, que isso faz parte do processo democrático do país, ao passo que, na prática, objetivam evitar as demarcações das terras tradicionais ocupadas ou reivindicadas por povos indígenas e formalizar áreas indevidamente usurpadas destas populações.
No formato proposto pelo MJ, os processos de demarcação de novas terras indígenas passam a ter interferências de representantes contrários aos interesses indígenas e de diversos órgãos governamentais.
a) Dos membros do Grupo Técnico: o desmonte da Funai
Art. 9º O grupo técnico será composto por profissionais com habilitação e experiência comprovada, conforme disposto no § 1º, do Decreto 1.775, de 1996, observada, no mínimo, a seguinte composição:
IV – um profissional com formação superior ou técnica de nível médio na área agronômica ou fundiária, que, na ausência de servidores da Funai, poderá ser indicado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
O Decreto 1.775/96 estabelece claramente que o grupo técnico será composto preferencialmente por técnicos do seu quadro. A “habilitação e experiência comprovada” ali (art. 1º) restringem-se ao antropólogo que realizará os estudos antropológicos de identificação a partir do qual (“será fundamentada”) a Funai realizará os estudos complementares de natureza “etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação”. Preferência, reza o Houaiss, é a “possibilidade legal de passar à frente dos outros; prioridade”. Além disso, dispõe o § 2º do Decreto 1.775: “O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio.
A Funai dispõe de quadros com esta qualificação (agrimensores, engenheiros cartógrafos, técnicos agrícolas etc.) aos quais será dada a preferência na composição do grupo técnico e a solicitação de apoio ao Incra e/ou institutos estaduais de terras é somente caso necessária, essa necessidade determinada, deduz-se, exclusivamente pela Funai (que de fato em muitos casos já o faz, há anos). A proposta do MJ nada acrescenta ao Decreto o que leva-nos a conjecturar de intenções não declaradas por detrás destas inovações inócuas. Dentre elas o de possibilitar a consumação de laudos ou contra laudos desfavoráveis aos interesses e direitos dos povos indígenas, e base para futuras ações judiciais, como veremos mais adiante.
b) A interferência da AGU no Grupo Técnico:
Art. 9º, V – um procurador federal, indicado pela AGU preferencialmente entre os profissionais lotados na Procuradoria Federal Especializada junto à Funai.
Reza o Decreto 1.775/96 em seu § 4° “O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo.”
São estudos, lembramos, para delimitação/revisão de uma determinada terra indígena e o texto é explícito ao assinalar que tal recorrência a “comunidade científica ou de outros órgãos públicos” só se dará para “embasar” aqueles estudos e quando for o caso – ou seja, a determinação do caso será de iniciativa do órgão federal de assistência aos índios, a Funai, e não o Ministro da Justiça.
O Ministro e/ou seus assessores ao formularem esta proposta demonstram desconhecer os procedimentos internos da Funai, pois NENHUM processo de reconhecimento de terras indígenas segue seus trâmites SEM passar por pareceres da Procuradoria Federal Especializada.
Por outro lado, e aqui novamente a proposta do MJ deixa-nos alerta para intenções outras, a AGU tem assumido postura, abertamente, contra os direitos indígenas, tanto que é responsável pela portaria 303/2012. Vale lembrar que a Procuradoria Especializada tem sofrido com reestruturação da AGU, quando os profissionais foram retirados das sedes regionais da Funai e lotados em órgão centralizado, distante das comunidades indígenas. Temos ainda informações que o chefe da AGU tem agido administrativamente para impedir que seus subordinados lotados na PFE da Funai se manifestem em processos judiciais cuja demanda é a posse indígena, agindo pois com o intuito de impedir que a União (proprietária presente, passado ou futuro desta parcela do território nacional) se manifeste no processo – dando ao Judiciário ou aos advogados de pretensos proprietários, argumento formidável para a descaracterização da posse indígena. Aqui, abre-se espaço para interferências/pressões do Ministro da AGU, cargo atualmente ocupado por Luiz Ignácio Adams, que na reestruturação concentrou poderes.
c) O novo formato do GT: o controle dos processos administrativos passa a ser dos ruralistas (CNA), mineradoras, empreiteiras e base aliada (PMDB, PP, etc.)
Art. 10. No prazo de cinco dias contados da data da publicação da constituição do grupo técnico de que trata o art. 8º, a Funai notificará:
I – a comunidade indígena envolvida;
II – os Estados e os Municípios em que se localize a área em estudo;
III – os seguintes órgãos federais:
a) Secretaria-Geral da Presidência da República;
b) Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;
c) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento;
d) Ministério das Cidades;
e) Ministério do Desenvolvimento Agrário;
f) Ministério do Meio Ambiente;
g) Ministério de Minas e Energia;
h) Ministério do Planejamento;
i) Ministério dos Transportes;
§ 1º Outros órgãos poderão ser notificados, conforme as peculiaridades da área objeto de estudo.
§ 2º As Comunidades indígenas envolvidas indicarão representantes para participarem do procedimento administrativo, segundo suas formas próprias de representação, para atendimento do disposto no § 3º, do art. 2º, do Decreto nº 1.775, de 1996, e nos artigos 6º e 7º do Decreto nº 5.051, de 2004.
§ 3º Os órgãos referidos no inciso III, do caput, sem prejuízo de sua manifestação, poderão consultar seus órgãos e entidades vinculadas que tenham pertinência temática com a matéria, bem como indicar representantes para acompanhar e participar das atividades de campo do grupo técnico.
Aqui novamente a proposta do MJ de regulamentação do Decreto 1.775/96 fere o próprio Decreto. Dispõe este diploma legal em seu § 4° : “O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo”. É o GT constituído pela Funai que, quando for o caso, solicitará a contribuição de membros de outros órgão – o que supõe que essa solicitação de contribuição deverá, a critério do coordenador do grupo técnico, ser relevante para embasar os estudos. Querer estabelecer por Portaria a quais órgãos públicos o coordenador do GT da Funai deverá obrigatoriamente solicitar colaboração fere frontalmente o disposto no Decreto 1.775.
Além deste aspecto ilegal e perigoso, o Ministro propõe ainda que os membros de órgãos do governo indiquem “representantes para acompanhar e participar das atividades de campo do grupo técnico”. Tal proposta é uma verdadeira aberração e contraria diretamente o disposto no Parágrafo 1º do Decreto 1.775 e introduz, novamente, procedimentos não estabelecidos naquele diploma legal. Ou o Ministro imagina que os índios irão permitir que agentes de órgãos claramente dispostos a contrariar seus interesses adentrarão suas aldeias? Ou o Ministro recorrerá à Polícia Federal ou à Força Nacional de Segurança, para lhes dar apoio?
Novamente entendemos que o Ministro da Justiça visa outras intenções que não aquela de regular os procedimentos do Decreto 1.775, mas sim o de estrangular os procedimentos, inviabilizando-os para que, como nos anos de chumbo o faziam agentes de uma FUNAI militarizada, protelava o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas para que os invasores tivessem tempo suficiente para consolidar suas “propriedades”.
No que se refere às comunidades indígenas – inciso I e § 2º do artigo –um detalhe chama a atenção, que é a Convenção 169 da OIT, indicando uma possível vinculação com o propósito do governo brasileiro de regulamentação da Consulta. Conforme já se sabe, o governo brasileiro tem defendido posição de que as comunidades indígenas não tem direito de veto, ou de decisão. No contexto desta Portaria, as comunidades indígenas passam a ser consultadas, sem poder de decisão, referendando proposta de demarcação de um emaranhado de órgãos públicos enumerados ou não no art. 10.
O processo de demarcação sai da esfera técnica do que é uma terra indígena (art. 231, § 1º) e passa para a esfera política (com seus tentáculos e tomas-lá-da cá), numa situação muito semelhante ao almejado com a PEC 215/00, tornando impossível a demarcação de novas terras indígenas. Nos termos da proposta do Ministro da Justiça, o Executivo continua com sua função de demarcar uma terra indígena, mas sob o controle dos Ministros indicados pela “base aliada” ou seja, a bancada ruralista no Congresso. Não é a toa que os Ministros da Agricultura, Minas e Energia, Cidades, Transportes, poderosos em termos orçamentários, são indicados pela tal “base”, sem falar do Ministério do Meio Ambiente, conduzido por uma “técnica” que sabe muito bem ouvir aquela “base”.
Neste formato, os trabalhos de campo serão prejudicados, sofrerão interferências constantes, resultando em demora imotivada. Na prática, os trabalhos de campo tornam-se inviáveis e servirão de base para novos processos judiciais. Os trabalhos de campo dificilmente serão concluídos. E o pior, os processos que por ventura chegarem ao final, não atenderão aos limites das terras indígenas definidos na CF/88. Esperar que os índios concordarão em referendar tais procedimentos é desconhecer a natureza da luta destes povos.
Esse modelo repete aquele praticado pelo Governo Militar durante a ditadura, como se percebe pela sua evidente analogia com o espírito da manifestação do Coronel Nobre da Veiga, que esteve à frente da FUNAI entre 1979 e 1981, a respeito dos procedimentos então realizados:
“toda vez que é eleita uma área indígena, antes de ela ser decretada, de ser oficializada, procuramos encaminhar, como temos feito, aos Governos dos Estados, aos órgãos federais e estaduais que se interessam pela terra, tais como IBDF, CEMA, INCRA, o DNER, o DNPM, todos os institutos de terra do Estado, de maneira que não passamos à eleição da área sem que esses órgãos nos digam quais serão os problemas criados por essa eleição, para evitar os conflitos que hoje existem em quase todas as 250 reservas indígenas…” (Coronel Nobre da Veiga, Comissão da Câmara, 17/9/1980).
Art. 11. A notificação de que trata o art. 10 deverá conter:
I – informação quanto à constituição de grupo técnico especializado e a natureza dos estudos de identificação e delimitação de terras indígenas;
II – informações sobre a área objeto de estudo e o povo indígena envolvido; e
III – solicitação para que:
a) no prazo de quinze dias indique representante técnico para acompanhar o trabalho do grupo técnico;
b) no prazo previsto no § 5o, do art. 2o, do Decreto no 1.775, de 1996, forneça informações relevantes sobre a área e apresente quesitos sobre o processo de identificação e delimitação a serem respondidos pelo grupo técnico.
Parágrafo único. A ausência de manifestação ou indicação de representantes técnicos no prazo do inciso III, do caput, não obstará o prosseguimento dos trabalhos do grupo técnico.
Art. 12. Transcorrido o prazo de que trata o inciso III, do art. 11, a Funai publicará ato com a relação dos indicados para acompanhar os trabalhos do grupo técnico.
Parágrafo único. O grupo técnico iniciará seus trabalhos após a publicação da relação de que trata o caput.
O desconhecimento que o Ministério da Justiça detém sobre os procedimentos de identificação de uma terra tradicional indígena é pasmante e vergonhosa. Com certeza os técnicos e responsáveis por estes procedimentos na Funai devem ter passado, senão ao Ministro, mas aos seus assessores, como se realiza este processo de reconhecimento. Pois é disso que se trata: reconhecer, ou seja, identificar, por via de estudos antropológicos e etnohistóricos, a ocupação de um determinado trato de terras por um povo indígena para que o Estado reconheça aquele trato de terra como de ocupação tradicional indígena. É isso que diz o artigo 231 da Constituição. Nada mais. Identificar é reconhecer: uma terra é indígena independentemente deste reconhecimento; o procedimento é meramente formal, administrativo. Estes Estudos, coordenado e conduzido por antropólogo de qualificação reconhecida (art 2º do Decreto 1.775), é em geral feito solitariamente por ele. Este é o espírito do Decreto: o antropólogo deve ter toda a liberdade para realizar seu estudo, sem pressões ou constrangimentos de qualquer ordem. É com base neste estudo antropológico que a Funai constitui o GT para “estudos complementares” (parágrafo 1º do 1.775). Contrariando mais uma vez o Decreto, o Ministro da Justiça quer que esse antropólogo vá a campo com uma tropa de, do mínimo, 14 pessoas! Na proposta do Ministro, o GT de identificação e delimitação será formado pelos profissionais indicados pela Funai na Portaria que cria o GT (mínimo 03 pessoas) e pelos técnicos indicados pelos respectivos estados, municípios (pelo menos 02) e dos 09 ministérios notificados, mais seus órgãos e entidades vinculadas. O que pretende o Ministro da Justiça com tal absurdo? Avaliamos que é para simplesmente inviabilizar o processo, porque nem os povos indígenas se submeterão a tal constrangimento e muito menos o antropólogo, se de “qualificação reconhecida” for.
CAPÍTULO IV
DA IDENTIFICAÇÃO E DA DELIMITAÇÃO DA ÁREA
a) O trabalho dos Antropólogos: desqualificação
Art. 14. O grupo técnico elaborará estudos complementares de natureza etno-histórica, jurídica, cartográfica, ambiental e fundiária da área em estudo, observado o disposto em portarias do Ministério da Justiça e da Presidência da Funai.
Parágrafo único. Em caso de divergência total ou parcial entre os membros do grupo técnico sobre a proposta de delimitação da área, a posição divergente será consignada em separado, em parecer fundamentado, que integrará o relatório circunstanciado de identificação e delimitação.
Neste Parágrafo Único se expõe com todas as letras as intenções perversas do Ministro da Justiça. Como ele espera haver consenso com polos tão díspares e que defendem interesses antagônicos neste Grupão da ditadura ressuscitado? Fica evidente que a decisão sobre os dissensos – óbvios – será arbitrada por ele. E havendo dissenso, o processo não avançará! Se atualmente o Ministério devolve processos para a Funai “efetuar novas diligências” ao menor reclamo de um deputado da “base aliada” imaginamos como será se tal Portaria vier a ser publicada. Além disso, com a redação acima transcrita, dentro do GT poderão ser construídas peças a ser usadas para posterior questionamento judicial da decisão tomada pelo GT e pela presidência da Funai.
Deste modo, a valoração de pareceres divergentes ou contra laudos, criados no interior dos GTs, somados aos questionamentos de representantes dos diversos órgãos públicos (art. 10) sem a devida qualificação para atuar nas questões indígenas, além de desconsiderar os trabalhos de quem coordena o GT, fragiliza os estudos e servirão de base para a interposição de novos processos judiciais. O trabalho do Antropólogo é desvalorizado.
Este modelo contraria os principais julgados dos tribunais que referendaram os trabalhos antropológicos. O Poder Judiciário tem reconhecido e acolhido os trabalhos antropológicos, produzidos com qualificação por profissionais geralmente indicados pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Vejamos:
a.1) Petição 3.388/RR – Terra Indígena Raposa Serra do Sol
“3. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO: (…) 3.2. Os dados e peças de caráter antropológico foram revelados e subscritos por profissionais de reconhecida qualificação científica e se dotaram de todos os elementos exigidos pela Constituição e pelo Direito infraconstitucional para a demarcação de terras indígenas, não sendo obrigatória a subscrição do laudo por todos os integrantes do grupo técnico (Decretos n. 22/91 e 1.775/96).”
a.2) Apelação Cível n. 2007.01.00.051031-1 – Xavante de Marãiwatsédé
“22. O Laudo Pericial Antropológico, fartamente instruído por documentos históricos, corrobora as assertivas contidas no Parecer da FUNAI, não deixando margem a nenhuma dúvida de que a comunidade indígena Xavante Marãiwatsédé foi despojada da posse de suas terras na década de sessenta, a partir do momento em que o Estado de Mato Grosso passou a emitir títulos de propriedade a não-índios, impulsionados pelo espírito expansionista de ‘colonização’ daquela região brasileira.”
b) Contradição com o direito originário e o falso conflito ou impactos com áreas urbanas, áreas ocupadas por comunidades tradicionais e por agricultores familiares
Art. 16. O grupo técnico elaborará relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena contendo as seguintes informações:
I – estudo antropológico de identificação da área em estudo, conforme disposto no art. 13;
II – dados gerais sobre a comunidade indígena interessada, com a descrição e análise do histórico de ocupação da área;
III – identificação, localização e descrição detalhada das áreas de ocupação tradicional e das indispensáveis à habitação e a reprodução física e cultural da comunidade indígena;
IV – descrição e análise das atividades produtivas, incluindo a identificação, localização e dimensão das áreas ocupadas e os recursos naturais necessários para este fim;
V – levantamento fundiário, com o histórico, a natureza e o detalhamento da ocupação indígena e não-indígena;
VI – manifestações de que trata a alínea “b”, do inciso III, do art. 11;
VII – resposta aos quesitos formulados ao grupo técnico, nos termos da alínea “b”, do inciso III, do art. 11;
VIII – parecer em separado dos membros do grupo técnico na hipótese de divergência, nos termos do parágrafo único, do art. 14;
IX – análise das manifestações de que tratam os incisos VI e VIII, detalhando os motivos para seu acolhimento, total ou parcial, ou para sua rejeição;
X – conclusão e proposta de delimitação da terra indígena, contendo os limites da área a ser demarcada;
§ 1º O relatório circunstanciado de identificação e delimitação atenderá, ainda, integralmente aos requisitos e dispositivos da Portaria nº 14, de 09 de janeiro de 1996.
O art. 16, incisos e § 1º da minuta, modificam, ampliam e contradizem exigências estabelecidas pela Portaria/FUNAI nº 14, de 09 de janeiro de 1996 que estabelece regras sobre a elaboração do Relatório Circunstanciado de identificação e delimitação de terras indígenas, incluindo e oficializando potenciais posições divergentes ocorridas no interior do GT. Ao mesmo tempo, indica que deve-se continuar a seguí-las, resultando em contradição, que só tem como objetivo impossibilitar a finalização da elaboração dos Relatórios.
§ 2º – A proposta de delimitação de terra indígena deverá ser elaborada procurando minimizar eventuais conflitos ou impactos, especialmente em relação a áreas urbanas, áreas ocupadas por comunidades tradicionais e por agricultores familiares.
Como acima esclarecido, toda e qualquer identificação/demarcação de terras indígenas hoje acarreta necessariamente o conflito. É o preço que o Estado brasileiro tem que arcar por sua omissão, isto é, pelo não reconhecimento destas terras anteriormente e por haver deixado que um estado federado tratasse terras indígenas como se devolutas fossem. Terras Indígenas são indígenas sempre porque os direitos que detém são originários, isto é, são anteriores ao próprio Estado brasileiro diz a Constituição. O § 2º acima, ao estabelecer critério indutor de redução das terras tradicionais dos povos indígenas, fere frontalmente a Constituição.
A redução de territórios indígenas foi afastada no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, Petição 3.388/RR. Vejamos:
1.3. O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em “bolsões”, ilhas, “blocos” ou “clusters”, a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio).
Porém, a Constituição de 1988 também assegurou, harmonicamente, os direitos das demais comunidades tradicionais e dos agricultores familiares.
No contexto, a percepção de que a Constituição traz conflitos entre direitos ou que os direitos dos índios impactam áreas urbanas, comunidades tradicionais ou de agricultores familiares não procede. Posição contrária não resiste a uma leitura dos fatos e do direito, além de eivada de preconceito, triste lembrança colonizadora.
As comunidades tradicionais conviveram e convivem pacificamente com as populações indígenas. Muitas desde os tempos da escravidão, pois foram os índios que lhes deram abrigo quando perseguidos pelos escravocratas, precursores dos ruralistas de hoje. O que se vê é a unidade entre comunidades tradicionais e indígenas, pois sofrem as mesmas pressões em seus territórios, por parte dos mesmos grupos invasores, que tem seus interesse atendidos pela Minuta do Ministro da Justiça.
Em relação aos agricultores familiares, não há impacto e sim uma significativa soma. A legislação vigente, em particular o próprio decreto 1775/96, garante o reassentamento dos agricultores familiares, os quais, ficam em melhores condições, pois os módulos rurais do Incra, geralmente, são maiores que as terras que dispõem, facilitando, inclusive, o acesso às linhas de créditos. Nos últimos dias representantes dos agricultores de Santa Catarina estiveram em Brasília, reunidos com o Ministro da Justiça, apoiando processos de demarcações e cobrando seus direitos. Na Bahia, grupos de agricultores ocupantes da Terra Indígena Tupinambá de Olivença também tem solicitado apoio para receber as indenizações e ser incluídos em projetos de reforma agrária.
Por fim, também não é verdade que as demarcações de terras indígenas impactam áreas urbanas. O que ocorre é a pressão imobiliária de hotéis, cartórios ou mesmo resortes para adentrar em terras indígenas (grileiros em geral). Eventuais conflitos com populações urbanas devem ser resolvidos caso a caso e não de forma genérica.
Para apontar os equívocos na Portaria que é apresentada, recorremos novamente ao entendimento do STF na Petição 3.388/RR:
“10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de desenvolvimento nacional tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena.”
O que a legislação brasileira propõe, suficientemente, é resguardar o direito de cada grupo ou pessoas e não restringir o direito de um grupo/pessoas e conceder a quem não dispõe do direito.
c) Nova instância no procedimento administrativo e Câmara de Conciliação
Art. 17. O coordenador do grupo técnico apresentará o relatório circunstanciado à Funai, que encaminhará cópia aos representantes da comunidade indígena envolvida, dos órgãos públicos e dos entes federados que acompanham os trabalhos do grupo técnico.
O relatório circunstanciado será disponibilizado aos demais órgãos públicos, estados e municípios antes da sua publicação no DOU, resultando, por óbvio, pressão política de toda ordem.
§ 1º Os representantes da comunidade indígena envolvida, dos órgãos públicos e dos entes federados que acompanham os trabalhos do grupo técnico poderão manifestar-se no prazo de trinta dias do recebimento da cópia do relatório circunstanciado de identificação e delimitação, apresentando à Funai razões instruídas com todas as provas pertinentes.
Cria-se mais uma possibilidade de questionamento do Relatório Circunstanciado não previsto no Decreto 1775/96 e estabelece prazo de trinta dias para tanto.
§ 2o O órgão competente da Funai elaborará parecer técnico sobre o seu conteúdo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação, bem como sobre as manifestações previstas no § 1o, encaminhando o procedimento à deliberação da Presidência da Funai.
§ 3o Constatados conflitos de interesses que possam prejudicar a regular tramitação do processo de demarcação ou a garantia dos direitos das comunidades indígenas envolvidas e dos demais interessados na área proposta para delimitação, a Presidência da Funai poderá encaminhar o processo administrativo ao Ministério da Justiça, solicitando a instauração de procedimento de mediação pela Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos, da Assessoria Especial para Questões Indígenas, do Gabinete do Ministro da Justiça.
Por meio deste dispositivo, cria-se uma nova instância, a Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos no âmbito do MJ, não prevista no Decreto 1775/96, para deliberação sobre o conteúdo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de terra indígena independente da presidência da Funai, além de retirar poderes do órgão indigenista.
§ 4o A Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos restituirá o processo administrativo à Funai, com parecer contendo o relatório e os resultados do procedimento de mediação, para decisão da Presidência da Funai.
A decisão da presidente da Funai sobre o relatório Circunstanciado fica subjugada (moral e tecnicamente) ao parecer da Câmara de Conciliação. A decisão da presidência da Funai, é transformada, com isso, em mero ato formal e poderá ser, inclusive, contraditória com eventual posição da Funai.
Esta nova fase vem acompanhada da criação de “Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos” no interior do Ministério da Justiça, que não traz elementos suficientes para um diagnóstico maior. Porém tudo indica que a proposta visa substituir e oficializar as atuais mesas de negociação, que ainda não apresentaram resultados práticos aos direitos dos índios, dos pequenos agricultores ou mesmo sobre possíveis direitos de quem dispõe de títulos concedidos indevidamente pelo poder público. A viabilização da proposta não encontra plausibilidade dentro de um emaranhado de questões desconexas e desnecessárias (contrárias a preceitos constitucionais) apresentado na proposta de Portaria. O que não se admite em uma Câmara de Conciliação e Mediação é propor conciliar interesses antagônicos quando desprovidos de base legal, como por exemplo a redução de terras indígenas.
Contudo, as organizações indígenas e indigenistas indicam a necessidade de atender as demandas dos pequenos agricultores com urgência, principalmente daqueles que se dispõem a sair das terras indígenas. Porém, os dispositivos jurídicos já existem e dependem, tão somente, de vontade política e não de uma nova Portaria. No procedimento do Decreto 1.775/96 a Funai já promove o levantamento destas questões, que dependem tão somente de encaminhamentos práticos.
Art. 18. A Presidência da Funai, observado o disposto no art. 17, decidirá:
I – pela aprovação do relatório;
II – pela rejeição do relatório; ou
III – pela determinação ao grupo técnico para que realize diligências complementares ou a revisão da proposta de delimitação, estabelecendo prazo para conclusão.
Parágrafo único. Nos casos de que tratam os incisos II e III do caput, a Presidência da Funai poderá determinar a constituição de novo grupo técnico para revisão do relatório circunstanciado, estabelecendo prazo para sua conclusão.
Mais uma vez abre possibilidade do procedimento voltar “à estaca zero” com a constituição de um novo GT.
d) Das Audiências Públicas para discutir direitos de minorias
Art. 25. Para receber outras contribuições sobre as demarcações de terras indígenas e instruir o processo com outras informações, o Ministro da Justiça poderá promover audiência pública, nos termos do art. 32, da Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
A Constituição de 1988, em seu art. 231, declara os direitos dos índios e também assegura que a União deve proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Em se tratando dos direitos de minorias, ao analisar Mandado de Segurança de autoria de um grupo de deputados questionando a tramitação da PEC 215 (MS 32262), o Ministro Roberto Barroso assim pronunciou:
“MANDADO DE SEGURANÇA. PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL. DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS 1. Mandado de segurança impetrado por parlamentares para o fim de obstar a tramitação de proposta de emenda à Constituição que exige aprovação do Congresso Nacional para a demarcação de terras indígenas. 2. Plausibilidade do argumento de que poderia ocorrer ofensa a cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV), diante da natureza do direito dos índios à demarcação segundo o critério da ocupação tradicional e do risco de seu potencial esvaziamento pela submissão à deliberação majoritária.”
A iniciativa pode causar mais prejuízos do que benefícios, vide a audiência pública promovida pela Comissão de Agricultura da Câmara, no interior do Rio Grande do Sul em 29 de novembro de 2013.
Art. 26. Observado o disposto nos arts. 22 a 25, o Ministro da Justiça decidirá sobre as questões suscitadas nas manifestações de que trata o art. 20, e:
I – declarará, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;
II – prescreverá diligências que julgue necessárias; ou
III – rejeitará a proposta de identificação e delimitação da terra indígena, retornando os autos à Funai, mediante decisão fundamentada do não atendimento ao disposto no § 1o, do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.
Parágrafo único. Nos casos de que tratam os incisos II e III do caput, o Ministro da Justiça poderá determinar à Presidência da Funai a reavaliação da proposta de identificação e delimitação da terra indígena, com base nas manifestações e pareceres que integram o processo, bem como a realização de novos estudos, inclusive com a constituição de novo grupo técnico.
Neste artigo, aparece mais uma possibilidade de constituição de novo GT – o terceiro – para estudo da mesma terra indígena.
CAPÍTULO V
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 28. É assegurado aos membros da comunidade científica, às entidades civis e a quaisquer interessados, o acompanhamento do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, desde que não interfiram de modo a perturbar ou impedir o seu regular processamento.
Abre-se a oportunidade para “entidades civis e quaisquer interessado” acompanhar o trabalho do GT. Pode-se aferir que os sindicatos rurais, federações sindicais e a própria Confederação Nacional da Agricultura (CNA) poderão acompanhar o procedimento administrativo. Ou seja, os inimigos históricos dos índios, muitos dos quais seus agressores, passam a acompanhar e por óbvio interferir no processo administrativo, seja através de pressão política, imprensa, etc.
Art. 34. Considera-se de má-fé o ocupante não-indígena que houver se apossado da área, ainda que mediante contrato de compra e venda, após a ciência, por qualquer meio, do conteúdo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação.
Limita o conceito de ocupação de má-fé e considera somente as ocupações posteriores ao relatório circunstanciado. É a tentativa de legitimar as invasões dos territórios indígenas e o pagamento pela terra a grileiros e fazendeiros que, comprovadamente expulsaram os povos para se apossarem de suas terras.
Art. 36. Revoga-se a Portaria do Ministro da Justiça no 2.498, de 31 de outubro de 2011.
Já existe uma portaria regulamentando a participação de “entes federados” no procedimento de demarcação.
V – O DESMONTE DA FUNAI
Após a Constituição de 1988, a Funai tem se firmado como o principal órgão do Estado brasileiro com condições de dar suporte técnico aos processos de demarcação de terras indígenas e promover a defesa destes povos tradicionais. Isso proporcionou um acúmulo de conhecimento técnico-jurídico e histórico, bem como da diversidade cultural dos povos existentes no Brasil que nenhum outro órgão público dispõe atualmente.
Recentemente, a Funai passou a ser alvo de crítica intensas, resultando em perda de autonomia, de orçamento, com redução de seu quadro profissional. Não é de se estranhar que os ataques contra a Funai partem justamente daqueles que atacam os direitos indígenas no Congresso Nacional ou dentro do governo brasileiro.
Por oportuno, deve-se reconhecer que o desprestígio da Funai, somado aos constantes cortes de orçamento e da falta de profissionais representam um retrocesso na política indigenista do Brasil.
A minuta de Portaria do MJ é um sinal de que o atual governo está disposto a ceder aos reclames dos ruralistas e de setores do próprio governo, em detrimento dos direitos indígenas.
Deste modo, o governos brasileiro, através do MJ, terá que fazer uma escolha: ou atende as reivindicações dos povos indígenas dando seguimento aos processos administrativos de demarcação das terras tradicionais, com a criação de novos GTs (condição posta na Constituição de 1988 e acolhida pelos tribunais); ou, atenda os reclames dos ruralistas invasores das terras indígenas com a publicação da Portaria que estabelece instruções para execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas de que trata o Decreto nº 1.775/96.
VI – CONCLUSÃO
Os argumentos dos que defendem mudar a legislação em vigor ou estabelecer novas instruções para resolver as questões indígenas, comandados pelo atual ministro José Eduardo Cardozo, não resiste a uma análise jurídica apurada. O instrumento tem caráter mais político do que jurídico, em razão do atrelamento desse governo aos interesses econômicos. Considera-se, deste modo, que os elementos apresentados são suficientes para concluir que:
O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de normas suficientes para atender aos direitos dos povos indígenas (demarcação de suas terras); aos direitos dos pequenos agricultores (reassentamento e indenizações); às indenizações de detentores de títulos concedidos pelo poder público aos particulares; e, de todas as comunidades tradicionais. Este argumento foi defendido em audiência pública na Comissão de Legislação Participativa[5];
A minuta de Portaria apresentado pelo MJ não tem força de Lei e contraria princípio constitucional da proibição do retrocesso e afronta os principais julgados dos tribunais;
A minuta do MJ não responde aos desafios atuais envolvendo demarcações de terras indígenas, populações tradicionais e pequenos agricultores e pode potencializar os conflitos;
A minuta de Portaria cria dificuldades insuperáveis, desnecessárias, promove contradições nos trabalhos dos GTs que embasarão novos processos judiciais;
A minuta apresentada não responde sobre a situação dos processos administrativos em curso na FUNAI, no Ministério da Justiça e na Casa Civil;
A proposição consolida o desmantelamento da FUNAI e relativiza os trabalhos antropológicos (reconhecidos nos julgados), consubstanciando os interesses dos mais diversos dentro do processo administrativo, em detrimento dos direitos indígenas;
O antropólogo, coordenador do Grupo Técnico, perde o controle do relatório de identificação e delimitação, substituindo as questões técnicas por elementos políticos, muito semelhante ao propósito da PEC 215/00;
Por fim, a proposição acolhe interesses dos ruralistas e tem semelhança objetiva com a PEC 215, PLP 227, Portaria 303/2012 da AGU, entre outros;
Uma eventual publicação da Portaria em questão reforçará compreensão, por parte dos povos indígenas, organizações de apoio aos povos e da sociedade em geral de que o Governo Dilma é claramente anti-indígena, aliado de primeira hora dos ruralistas, alinhado aos interesses do poder econômico nacional e transnacional, notoriamente do agronegócio, e obstinado por um modelo de desenvolvimento neocolonizador, usurpador de territórios, etnocida e ecocida.
Por todo o exposto, as organizações que subscrevem exortam o governo brasileiro a desistir, definitivamente, da tentativa de publicação desta portaria e a se concentrar na retomada da demarcação das terras tradicionais conforme prescreve a Carta Magna brasileira e as normas infraconstitucionais vigentes no país. O caminho jurídico para a superação dos conflitos que a temática enseja já existe e está aberto. Basta o governo brasileiro respeitar e fazer cumprir.
Assinam este parecer as seguintes organizações indígenas e indigenistas:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Bancada Indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista e da Mesa de Diálogo
Coordenação Das Organizações Indígenas Da Amazônia Brasileira – COIAB
Articulação Dos Povos E Organizações Indígenas Do Nordeste, Minas Gerais E Espírito Santo – APOINME
Grande Assembleia Guarani Kaiowá – Aty Guassu
Articulação dos Povos Indígenas do Sul – ArpinSul
Conselho Do Povo Terena
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Centro de Trabalho Indigenista – CTI
Instituto Socioambiental – ISA
Greenpeace Brasil
Notas de Rodapé:
[1](SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Editora Malheiros, 18.ª edição, 2000, p.831).
[5]Comissão de Legislação Participativa – Audiência Pública.
Tema: MEDIDAS LEGISLATIVAS QUE POSSIBILITEM INDENIZAÇÃO A DETENTORES DE TÍTULOS DE TERRA EXPEDIDOS PELO PODER PÚBLICO SOBRE ÁREAS INDÍGENAS. REQUERIMENTOS: – CLP – Req. nº 65/2013, de autoria do deputado Lincoln Portela. Data: 18/06/2013.
Brasília, 08 de abril – No final da manhã desta terça, a Bancada Indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e integrantes da Mesa de Diálogo, criada no ano passado, divulgaram carta ao plenário da comissão, durante a abertura da 22ª reunião ordinária, manifestando “frustração” diante da pauta apresentada pelo governo.
Conforme as lideranças indígenas, os governistas não cumpriram as decisões tomadas pelo coletivo na 21ª reunião e trouxeram pautas de interesse antagônico ao dos povos indígenas, caso da minuta que pretende alterar o procedimento de demarcação de terras indígenas.
“Ficou agendada para o mês de janeiro uma reunião preparatória do grupo responsável por elaborar uma proposta metodológica para Conferência Nacional de Política Indigenista, a qual deveria ser submetida à plenária na próxima reunião ordinária, que deveria ter ocorrido no mês de março de 2014. Nenhuma das duas ocorreu”, afirmam as lideranças na carta.
Mais uma reunião ordinária da CNPI teve início com o governo federal desconstruindo e não cumprindo deliberações tomadas nos encontros anteriores. Uma delas diz respeito ao objetivo da criação da Mesa de Diálogo, uma vez que ela deveria fazer avançar as demarcações de terras indígenas e nada mudou: tudo segue paralisado.
“O governo desrespeita as decisões tomadas coletivamente em plenária, e propõe uma pauta para esta reunião focada apenas nos seus interesses políticos, impondo de forma autoritária, a apreciação da Minuta de Portaria, substituindo o processo de discussão com as bases por um único Seminário Nacional”, diz trecho na carta que pode ser lida na íntegra abaixo.
Carta Aberta das lideranças Bancada Indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e da Mesa de Diálogo
Prezado Sr. Ministro da Justiça – José Eduardo Cardozo;
Prezados Srs e Sras. Membros da Bancada Governamental da CNPI;
Por meio desta carta pública, viemos manifestar nosso sentimento de frustração e indignação a respeito da proposta de pauta apresentada pelo governo para a 9ª Reunião Extraordinária da CNPI.
Desrespeitando todas as deliberações acordadas em plenária durante a 22ª Reunião Ordinária, realizada entre os dias 10 a 12 de dezembro de 2013, quando se decidiu pelo processo de construção coletiva de uma Conferência Nacional de Política Indigenista, a convocatória desta reunião inverte completamente a lógica construída na reunião de dezembro. Na ocasião, ficou agendada para o mês de janeiro uma reunião preparatória do grupo responsável por elaborar uma proposta metodológica para Conferência Nacional, a qual deveria ser submetida à plenária na próxima reunião ordinária, que deveria ter ocorrido no mês de março de 2014. Nenhuma das duas ocorreu.
Havia sido acordado também em plenária que a discussão da mudança no processo de demarcação de terras indígenas, na qual se insere a proposta de Minuta de Portaria elaborada pelo Ministério da Justiça, deveria ser realizada dentro dos seminários regionais que culminariam na Conferência Nacional de Política Indigenista.
Mais uma vez, porém, o governo desrespeita as decisões tomadas coletivamente em plenária, e propõe uma pauta para esta reunião focada apenas nos seus interesses políticos, impondo de forma autoritária, a apreciação da Minuta de Portaria, substituindo o processo de discussão com as bases por um único Seminário Nacional. Trata-se de uma demonstração clara que concebe a CNPI como um mero espaço para referendar as posições e interesses do governo.
Diante desta postura intransigente, a bancada indígena e as organizações indígenas que compõem a mesa de diálogo decidiram conjuntamente com organizações indigenistas, realizar uma análise própria da referida Minuta de Portaria. De acordo com a fundamentação expressa no parecer, que acompanha essa manifestação, concluímos que a Minuta de Portaria representa mais uma tentativa de ataque aos direitos indígenas, contrariando a legislação vigente, e cedendo aos interesses do agronegócio, e da base aliada do Governo.
Por essa razão, não vemos nenhum sentido em realizar o Seminário Nacional proposto, e apelamos para o bom senso, reivindicando que o Governo desista definitivamente desta medida desnecessária e descabida, e concentre seus esforços na retomada da demarcação das terras tradicionais, conforme prescreve a Carta Magna brasileira.
A instauração da Mesa de Diálogo com o movimento indígena no âmbito da CNPI, que sucedeu às manifestações de junho de 2013, tinha como objetivo avançar nas demarcações de terra, que já estavam paralisadas. Em um curto espaço de tempo, o Governo abandonou completamente a pauta, desconsiderando todas as reivindicações apresentadas, e tenta agora converter este espaço num conselho de sentença contra os povos indígenas, enterrando qualquer possibilidade de demarcação de seus territórios tradicionais.
Nós, lideranças indígenas, povos e organizações reiteramos a disposição de lutar contra este tipo de manobra que tenta nos usar para fins políticos, em detrimento dos nossos direitos fundamentais e coletivos.
Bancada Indígena da CNPI e representantes da Mesa de Diálogo